2016 tem sido um ano, no que toca à literatura, marcado por reedições, publicação de obras integrais e a revisitação de grandes momentos clássicos da sua história. Um desses exemplos chega com a edição de “Os Sonetos de Shakespeare” (Quetzal, 2016), com tradução de Vasco Graça Moura e que apresenta os 154 sonetos compostos por William Shakespeare.
Na introdução a esta edição, Vasco Graça Moura resume de forma exemplar os sentimentos que atravessam estes sonetos, tão trágicos quanto a poesia de Camões e, muitas vezes, tão negros quanto os melhores sonhos de Tim Burton: “…nos Sonetos, o tempo trai a beleza e as pompas, a velhice trai a juventude, o amigo trai o amigo. O homem trai a mulher, a mulher trai o homem, a tristeza e o desânimo traem a alegria, a decadência trai a pujança, a escassez trai a abundância, os sentimentos são traídos…”
Muito se tem discutido se estes Sonetos serão uma espécie de diário sentimental escrito ao longo dos anos, e se neles encontraremos alguns indícios da alma Shakespeariana. Seja como for, o génio de Shakespeare revela-se aqui de forma clara, sem cenários, diálogos ou encenações à moda das tragédias que levou a palco, apesar de não faltar aqui tragédia, amores condenados e corações que sangram abundantemente. São várias as sequências, que incluem os “marriage sonets”, os da Jornada, os da traição do amigo, os do poeta rival, os da despedida e os da “Dark Lady”.
Nestes Sonetos, o real surge texturado, abraçado por comparações e metáforas, com uma grande variedade de adornos maneiristas – o espelho, o relógio ou o instrumento musical – e sentimentos como a melancolia, a ausência, o espectro da morte, a distância do ser amado, a doença ou a imagem final da sepultura.
Quanto à tradução, Graça Moura diz ter decidido arriscar agora o decassílabo, que, “embora não coincidente nas acentuações”, estará mais próximo “do pentâmetro jâmbico Shakespeariano”. Seja como for a edição é bilingue, pelo que os leitores poderão sempre preferir ler os Sonetos na sua língua original. Um pequeno achado que deverá fazer parte de qualquer biblioteca poética.
“Ah, as maldades tuas não resgates
que ao coração me fazes; não me firas
cos olhos, mas coa língua; não me mates
de arte e viés; poder, poder prefiras.
Diz que amas noutra parte, mas de sorte
que não olhes ao lado à minha vista.
Porque feres com manha, se és mais forte
e eu não tenho defesa que resista?
Deixa-me desculpar-te, ah, meu amor
bem sabe!, o olhar dela é-me inimigo
e ela de mim desvia esse infractor
pra dardejar injúrias noutro abrigo.
Mata-me, já estou quase, por favor,
de vez a olhar-me e livra-me da dor.”
Sem Comentários