Terminou ontem o Tinto no Branco 2016, segunda edição do festival literário de Viseu. Mais do que livros, escritores e diseurs, celebrou-se a cidade e o seu Dão, com uma feira de vinhos e outras delicatéssen bem típicas a preços convidativos, porque nem só do Verbo vive o homem. A população ocorreu em massa e eram raras as almas que não traziam consigo um copo de vinho, entre conversas partilhadas e percursos improvisados, acolhidas pelo belo Solar do Vinho do Dão.
Na primeira noite seleccionámos o evento “Amor Às Cegas” – Poesia no Quarto Escuro, avisados do sucesso na edição de estreia do certame. Em plena Adega do Bispo, na completa escuridão, somos contemplados com quatro vozes que nos entregam poesia, versando além do Amor que prometia o programa. A experiência foi surpreendente, pela intimidade que a poesia tão naturalmente evoca, mesmo numa sala cheia de estranhos. Poemas ditos magistralmente por Filipe Vargas, Luís Filipe Borges, Mariano Marovatto e Rita Brütt, em que dificilmente se associa uma voz a uma cara (excepto no caso de Brütt, por razões óbvias).
O silêncio foi total. O espectador só, diante das palavras, inconsciente do Outro que o rodeava. Uma missa obscura, como se envolta em segredo, a poesia por evangelho, evocando os cristãos originais nas catacumbas, sem fórmulas de concílios, dogmas estranhos e vestes faustosas. A Palavra nua e crua, sem o filtro dos carismas, floreados ou truques de iluminação.
Pelo alinhamento passaram consagrados e inesperados, como Nuno Júdice, o inevitável Herberto Helder, José Tolentino Mendonça, poesia com sotaque brasileiro (que incluiu desde Manuel Bandeira a Leonard Cohen) e até a Carta a Portugal de Jorge Sousa Braga. A melhor surpresa chegou no final, pela voz de Filipe Vargas, que optou por uma “mixtape poética” que incluiu Camões, Adília Lopes, Doce, António Variações ou Heróis do Mar, entre muitos outros, o que resultou na perfeição.
Apesar dos avisos iniciais, o inevitável e urgente ruído das luzes fez-se convidado em diversas ocasiões durante aquela hora, confirmando o que já suspeitávamos desde a chegada: beber poeticamente no escuro é uma impossibilidade.
No dia seguinte, 3 de Dezembro, começámos a tarde sob os auspícios de Herberto Helder e da sua “A Morte Sem Mestre”, numa animada conversa entre Bruno Vieira Amaral e Fernando Pinto do Amaral. Com Shakespeare, Cervantes e outros mestres na equação, discutiu-se o valor real dos mestres e a existência de discípulos, em tempos de hiperpartilha e informação instantânea. Saltando para as conclusões, foram cuidadosas e ligeiramente optimistas, com a assunção de posições distintas e complementares.
Fernando Pinto do Amaral veio defender o que de perene sobra à literatura, para além do que a polui. Embora a dialéctica mestre/discípulo se tenha alterado, talvez irreversivelmente, os mestres ainda existem, apesar de uma forte dissipação da identidade autoral, essencial nos últimos dois séculos. No entanto, a presença de uma voz distintiva “com capacidade para ser como o paciente zero nas epidemias” mantém-se fulcral à relevância da literatura, assim como o desiderato de chegar a um “novo partilhável”, entre os extremos do “bestseller de aeroporto” e o registo “autista”, interessante apenas ao autor e a quem o rodeie. Destacou também a importância dos nichos literários, onde é possível discorrer sobre determinados ângulos concretos da actualidade com relativo sucesso, citando como exemplo o recém-lançado “A Gorda”, de Isabela Figueiredo. Como mestres referiu Ruy belo e Herberto Helder.
Bruno Vieira Amaral, descontraído e com o seu tom habitual de quem não tem nada a perder, abriu as hostilidades com a constatação de que hoje ninguém quer carregar o peso de um rótulo de mestre ou lidar com a presunção de ser discípulo. A reverência tornou-se contraproducente, sendo essencial o desafio directo à herança literária dos mestres, sempre com a consciência do passado, que necessariamente a condiciona, consciente ou inconscientemente. Por outro lado, focou a necessidade de evitar que a sombra dos gigantes literários do passado se torne paralisante, relembrando a vantagem dos escritores actuais: escrevem agora, com a possibilidade de acompanhar as mudanças de que também são parte e as reflectirem na sua obra.
A histórica relação vertical entre mestre e discípulo transformou-se numa dominante horizontalidade, com o ocaso da célebre tendência de derrubar as fundações da geração anterior a cada novo movimento literário que despontava.
Quanto aos mestres, Bruno Vieira Amaral preferiu apontar em abstracto “aqueles cuja escrita nos deixa insatisfeitos com a escrita que fazemos.” Destacou a importância de Joyce na morte do “romance balzaquiano”, ao colocar o indivíduo e a sua vida interior no centro da narrativa, o que exigiu novas abordagens, hoje verdadeiras masterclasses para a adaptação de dilemas novos, que são de sempre.
Com o advento de novos meios tecnológicos e a sofisticação das séries de televisão, a literatura perdeu peso. Na actualidade, a intensidade de um tema específico substitui a profusão de temas num mesmo romance. O romance, pela sua flexibilidade (“No romance cabe tudo”, como dizia Cervantes), viu as notícias da sua morte serem claramente exageradas e sobrevive saudável e em constante reinvenção, o que devolve a quem escreve e a quem lê a esperança no futuro da literatura, acompanhada do cuidado em não descurar as lições de quem preparou o caminho hoje trilhado.
Em seguida, sob a pesada égide de Shakespeare e da sua influência no romantismo e no “Amor de Perdição”, ao escritor João Tordo juntou-se o poeta e generoso anfitrião Renato Filipe Cardoso (em substituição de Helena Vasconcelos). Moderados por Pedro Vieira, começaram no Amor e passaram pela Poesia, para terminarem na Morte. Expliquemos, pois então.
João Tordo entrou literalmente a matar, com uma bem-disposta contagem de cadáveres nas peças do Bardo, sempre com números generosos, demonstrando a obsolescência de tal solução dramática nos dias de hoje, em que a morte é invisível. Em pleno Séc. XVI, “morrer de amor” era a solução ideal, senão a única possível perante a adversidade. Aos olhos da interpretação actual, essas mesmas mortes são simbólicas, catalisadoras do sonho e do prolongamento indefinido do Amor. Trocando por miúdos, as emoções são as mesmas, mas os meios de expressão são radicalmente distintos. Com esse aumento exponencial do espectro de soluções dramáticas disponíveis, essa causalidade trágica também se desvaneceu.
O romantismo original encontrou como sucedâneo pós-moderno a diluição entre o mundo interior e o mundo exterior, com o seu paradigma supremo nas omnipresentes redes sociais. Um maior controlo da actualidade tornou o Destino e a Sorte absurdos. No entanto, em termos emocionais e de narração dos mesmos, pouco ou nada mudou, desde que Shakespeare balizou as formas e abordagens às temáticas românticas.
Sobre a autoria e o escritor na sua obra, Tordo vê o romance como uma “possibilidade de completar uma viagem emocional que não fizeste”. No romance, reflecte ainda a sua própria aflição, quando era leitor, de encontrar a personagem perante um dilema. Mas esta forma literária vive precisamente destes dilemas e da recorrência dos erros pelas personagens, colocadas perante uma impossibilidade.
Para Renato Filipe Cardoso, a poesia é uma “forma de o poeta fazer sentido para os outros.” Na sua óptica, há muito de empírico nas experiências literárias. Toda uma sentimentalidade foi pensada e transformada em texto, numa cultura em que tempo é dinheiro e não ócio. O romance discorre sobre o que nos afecta como humanos e é lá que procuramos reencontrar as nossas experiências pessoais. A poesia, pelo contrário, vive do lirismo e do simbolismo.
As redes sociais quebraram o “romance do impossível” (como “Amor de Perdição”) e entraram nas histórias de amor, que podem acontecer a qualquer um. Perdeu-se o fatalismo, porque estes romances têm sempre um final feliz.
Sobre a existência ou obsolescência das correntes literárias, João Tordo focou a individualidade quase endémica dos autores e a inexistência de um movimento geracional, numa época em que “quase nunca estamos em lado algum”. Perdeu-se a noção de pertença a um espaço ou grupo, que partilhava ideias e revia textos, e a noção que possa existir de alguma nova geração portuguesa deriva apenas da imprensa. Impõem-se perguntas como a razão da inexistência de um questionamento sério sobre a utilidade da tecnologia ou, como João Tordo resumiu numa eloquente e inesperada pergunta quase retórica: “O que é que eu faço com as horas antes de morrer?”.
Os inevitáveis riscos das redes sociais surgiram naturalmente. Tordo focou a natural propensão humana para a resposta imediata a determinados estímulos, a necessidade de validação perante uma qualquer carência, a despersonalização do “passo tanto tempo fora de mim que depois me esqueço de quem sou”. Renato Filipe Cardoso focou a dimensão ilusória e quase surreal da rede, em que a acção perde terreno para a intenção e a artificialidade. Quanto à vocação mais comunitária da poesia, o poeta atribuiu a maior partilha do trabalho (em comparação com a ficção) à ausência de retorno financeiro nas edições.
Já depois do jantar seguimos para a conversa em torno da frase bíblica “Tomai todos e Bebei”, onde se pretendia discorrer sobre as afinidades entre vinho, amor e espiritualidade. No painel composto por Daniel Jonas, Frederico Lourenço e António Marujo, a conversa fluiu tranquila e sem grandes sobressaltos. Entre os destaques, a afirmação de Frederico Lourenço de que na Bíblia cada pessoa pode ler o que quer ler e ao mesmo tempo confrontar-se com o que realmente é dito, algo interessante tendo em conta o seu recente trabalho de tradução da Bíblia directamente dos originais gregos. Ou a afirmação de Daniel Jonas “creio em Deus apesar da religião”, a propósito do que hoje significa ser crente.
O melhor momento da noite e quiçá do festival foi a Missa Mal Dita, em que o poeta-feito-frade-de hábito-negro Renato Filipe Cardoso abençoou e levou às lágrimas os presentes na Capela do Solar, com um apanhado da melhor poesia surreal, apimentada, erótica e hilariante dos últimos séculos, entre Bocage, Alberto Pimenta, António Botto, Onofre Varela ou citações do glorioso “Manual de Civilidade Para Meninas Para Uso em Estabelecimentos de Educação” de Pierre Louÿs de 1927, obra intemporal e indispensável em qualquer biblioteca que se preze.
Fica um cheirinho do que por lá se ouviu: “Vi uma mulher afogar-se na piscina do hotel./Atirei-lhe um poema insuflável./Morreu./Desconfiei, por momentos, ser obra/de alguma metáfora furada./Nada disso: a certidão de óbito atestou/iliteracia funcional./Penso, apesar de tudo, que poesia nos pulmões/daria um belo epitáfio.” – Poema de Socorros a Náufragos do livro Estamina Para a Máquina de Lavar Dióspiros (Texto Sentido, 2015), cujo autor é precisamente o frade Mal Dito.
Para o dia da despedida elegemos a conversa entre o poeta Miguel-Manso e Inês Fonseca Santos, moderada pelo simpático e certeiro Tito Couto, acerca do poder trágico da poesia com o título “Descontrai Simão”.
A propósito do poder das palavras, Miguel-Manso focou-se especificamente na palavra poética defendendo que, apesar de a palavra construir a realidade, a “poesia é um aparte disso”, com menos público e consequentemente com menor impacto. Inês Fonseca Santos lembrou a perseguição ao grupo do Café Gelo, o “medo de alguém que produzisse um discurso” de oposição ao poder.
Miguel-Manso, perante o desafio de uma definição de poesia, escolheu apontá-la como “meio de mexer noutras coisas”, dramas pessoais, tragédias íntimas, gerir a dor que delas deriva, mas também falar de Amor, escrever apaixonado.
Para Inês Fonseca Santos, a poesia surge como um modo de manter intacta uma zona de silêncio face ao que se pretende dizer. Citando-a: “Escritas no poema (as palavras), abrem-se a significados e escondem também. São movimentos simultâneos.”
A sessão terminou com dois poemas. Miguel-Manso recordou Leonard Cohen com o seu “Poema do Cornudo” e Inês Fonseca Santos leu o poema “Casa”, de uma antologia homónima.
Terminado o evento, em que a organização da Booktailors foi inexcedível, em termos de conforto de participantes e público, rigor nos horários e interesse das temáticas abordadas, o balanço é extremamente positivo, com a literatura tratada com o respeito que merece, sem monólogos entediantes ou longas discussões repletas de chavões e inutilidades obscuras. Sem falsos simplismos e atenção ao detalhes, são festivais como este que estimulam a leitura e a (re)descoberta de autores e obras, num ambiente privilegiado, em que a troca de impressões e ideias (ainda) é possível, com tempo e sem o ruído excessivo do quotidiano.
Para o ano há mais.
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