“Nós éramos aves raras, a nossa família.”
Diz-se na gíria popular que “mãe é mãe”, mas a verdade é que, muitas vezes, a relação entre mãe e filha pode ser algo semelhante às relações entre Estados Unidos da América e União Soviética durante o período da guerra fria. Em “O meu nome é Lucy Barton” (Alfaguara, 2016), Elizabeth Strout observa à lupa uma não-relação entre mãe e filha, mostrando o imenso fosso que se abre perante pessoas que deveriam estar, de alguma forma, próximas.
Lucy Barton está numa cama de hospital, a recuperar de uma cirurgia ao apêndice que correu mal. Os dias correm vazios, as visitas do marido e das filhas são parcas – a relação amorosa está por arames -, mas tudo se transforma quando a mãe, que Lucy não vê há muitos anos, surge para se sentar à cabeceira da cama. Cinco anos em que não existiu sequer uma visita, fosse para Lucy visitar a casa onde cresceu ou a mãe vir a Nova Iorque conhecer as netas.
Durante os cinco dias em que a mãe passa à sua cabeceira, começam por falar de coisas tão banais quanto os vizinhos da infância e os destinos de cada um, mas aos poucos a tinta das paredes familiares vai-se descascando, revelando-nos a vida de Lucy enquanto criança e adolescente: uma infância de pobreza e provação, o ser olhada na escola como vinda de uma família que cheirava mal, os jantares de pão e melaço, as tareias da mãe, uma casa sem televisão, jornais, livros ou revistas. Uma vida que terminou quando, depois de fazer da biblioteca local a sua casa, ingressou na Universidade com uma bolsa integral, descobrindo na literatura uma tábua de auto-salvação:
“Mas os livros trouxeram-me coisas. É aqui que quero chegar. Fizeram-me sentir menos só. E eu pensei: vou escrever e as pessoas não vão sentir-se tão sós.”
A escrita navega magicamente entre um diário de uma adolescente e as profundezas do mais íntimo da alma humana, num livro essencial que nos mostra o lado mais cruel do amor. E que é, essencialmente, um retrato da literatura enquanto salvação e ferida, um acto de se ser implacável, uma forma de superação individual. Um livro que Sarah Payne, a personagem escritora que dará um curso frequentado por Lucy, irá descrever de forma arguta a meio do livro, apontando com isso a essência da escrita:
“As pessoas vão criticá-la por combinar a pobreza e os maus-tratos. Que expressão tão estúpida, «maus-tratos», que expressão estúpida e convencional, mas as pessoas dirão que há pobreza sem maus-tratos, e você nunca vai responder a nada. Nunca defenda a sua obra. Esta é uma história sobre amor, você sabe disso. Esta é a história de um homem que viveu todos os dias da sua vida atormentado por coisas que fez na guerra. Esta é a história de uma mulher que ficou com ele, porque era o que a maioria das mulheres fazia naquela geração, e que entra no quarto de hospital da filha e fala compulsivamente sobre os casamentos malogrados de toda a gente e que não sabe, não tem a menor ideia, do que está a fazer. Esta é a história de uma mãe que ama a sua filha. De modo imperfeito. Porque todos nós amamos de forma imperfeita. Mas se der por si a proteger seja quem for neste trabalho, lembre-se: não está a fazê-lo bem.“
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