“O Herói de Hacksaw Ridge” (“Hacksaw Ridge” no original) é o primeiro filme que Mel Gibson dirige desde “Apocalypto” (2006), tendo o seu nome estado envolto em polémica devido a problemas ligados ao álcool e a uma série de afirmações anti-semitas. Uma vez mais, Gibson interessa-se por questões de ordem moral, colocando no epicentro desta narrativa um soldado que se recusa a disparar uma arma por ser contra os seus princípios.
O filme começa em 1929, no Estado da Virgínia, e termina dezasseis anos mais tarde, na batalha de Okinawa, no derradeiro ano da Segunda Guerra Mundial. Acompanhamos o percurso da personagem principal, Desmond Doss (Andrew Garfield), desde a infância, e cedo percebemos que o pai (Hugo Weaving), um veterano da Primeira Guerra Mundial consumido pelo álcool, acabará por desempenhar um papel decisivo no que toca ao repúdio da violência por parte de Desmond, já que cresce sob a influência de um progenitor abusivo. Além disso, há um outro incidente que o marcará em definitivo: durante uma luta, atinge o irmão com um tijolo, apercebendo-se de que o golpe poderia ter sido fatal. E quando os Estados Unidos se envolvem na guerra, Desmond segue o exemplo do irmão e alista-se, sentindo que o único caminho passa por dar o seu contributo, sob pena de não conseguir ver-se ao espelho na manhã seguinte.
Pelo meio há ainda Dorothy (Teresa Palmer), a enfermeira cuja beleza desencadeia o coup de foudre, e que estará ao seu lado para o resto da vida. Dorothy será determinante para que Desmond não abdique das suas convicções, garantindo-lhe que nunca se sentirá desiludida – mesmo que a recusa em disparar uma arma dê origem a consequências tão nefastas como o tribunal marcial. A luta contra o poder estabelecido é dura, mas acabará por dar frutos: pela primeira vez, um objector de consciência é autorizado a avançar para o campo de batalha sem uma arma para se proteger, tendo como único objectivo prestar cuidados de saúde, nomeadamente a administração de morfina. No entanto, como Desmond está tão decidido a salvar soldados como a não matar, assistimos aqui não apenas à exaltação da coragem mas também à rejeição do mais ínfimo módico de brutalidade.
Em plena loucura da guerra – no meio de explosões, corpos mutilados, feridos em desespero, soldados consumidos pelo fogo -, encontramos um homem disposto a morrer recusando-se a contribuir para o cenário de horror. Um homem que, na qualidade de Adventista do Sétimo Dia, está firmemente apostado em defender o seu país através do pacifismo – ainda que se encontre sob fogo cruzado e numa das mais sangrentas batalhas de sempre. Doss defendeu os seus irmãos de armas e de que maneira: no momento em que viu a sua própria fé ser abalada, foi capaz de reunir forças ao ponto de salvar 75 vidas humanas nas condições mais improváveis. “Meu Deus, ajuda-me a salvar só mais um”, repetia Desmond a cada resgate – e cada resgate representava a conquista do respeito por parte do regimento que em tempos o desprezou, acusando-o de cobardia.
O facto de “O Herói de Hacksaw Ridge” se basear numa história verídica torna tudo ainda mais comovente. Estaremos perante um milagre? Mel Gibson parece acreditar que sim: talvez seja por isso que, no momento em que Desmond desce a montanha sobre tábuas e preso por cordas, o realizador opta por filmar em contre-plongée (de baixo para cima), levando-nos a acreditar que o herói ascende aos céus após uma longa provação – numa clara alusão à paixão de Cristo. Um regresso portentoso de um cineasta para quem a espiritualidade desempenha um papel fundamental – e que talvez o redima de todos os “pecados”. Seguramente um dos filmes do ano.
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