O hype é uma coisa tramada. No que toca à literatura, por exemplo, passámos os últimos meses a ouvir falar de Garth Hallberg, de Elena Ferrante ou, para mal dos nossos pecados, de Bob Dylan, mas a verdade é que o livro do ano com edição portuguesa esteve muito longe de ter o devido reconhecimento. Comecemos precisamente por aí: “O Czar do Amor e do Tecno” (Teorema, 2016), de Anthony Marra, é uma obra em estado primo, um livro extraordinário.
Não deixa de ser curioso que tenha sido um americano, nascido em 1984 – também o ano do título do livro mito de Orwell -, a vestir a pele de um Tolstoi moderno, traçando um retrato humano do muito que a história – e o regime soviético – apagou, num livro que, a fazer lembrar de raspão “O Pintassilgo” de Donna Tartt, nos apresenta, através da arte, a um conjunto de personagens imperfeitas e talvez por isso carregadas de humanidade.
“Antes de mais, sou artista e, só depois, censor“. As palavras pertencem a Roman Osipovich Markin, um censor do regime soviético, que tem a missão de apagar das fotografias oficiais personagens indesejados ou, se assim for a vontade de quem conduz os destinos da nação, acrescentar-lhe novos. Como bónus, Roman tem feito de Estaline um homem mais novo, caindo nas boas graças deste. Para mostrar a sua lealdade para com o grande ditador, Roman entregou o seu próprio irmão e, em jeito de penitência, vai desenhando o rosto deste em muitas das pinturas que retoca, imaginando mesmo como iria envelhecer se não tivesse encontrado a morte.
Porém, num regime despótico o estado de graça é algo da ordem do efémero. Quando Roman, que se descreve a si mesmo como um pintor falhado, é apanhado na posse de uma fotografia que originalmente mostrava Galina, uma das maiores bailarinas russas – à qual apenas deixou uma mão que parecia flutuar no vazio -, é considerado um traidor do regime, acto para o qual não há remissão. Como que a viver num processo Kafkiano, Roman treinará para apresentar uma confissão forjada, uma vez que a liberdade é de todo impossível e o importante será sempre a crença inabalável no socialismo: “O veredicto é entregue antes de a defesa apresentar as suas provas. A culpa e a inocência não determinam a sentença, é a sentença que determina tudo, incluindo a definição de culpa“.
O livro começa em 1937 e, na actualidade, uma historiadora de Arte estuda o mistério que se esconde em centenas de imagens que revelam sempre o mesmo rosto numa estranha linha cronológica. Um rosto que, pela Arte, pôde crescer aquilo que não conseguiu em vida. Pelo meio, descobre-se uma galeria imortal de personagens e lugares: uma bailarina caída em desgraça, uma rede de espiões polacos, mercenários sem piedade e uma cidade com um lago de mercúrio, um céu sem direito a estrelas e uma floresta feita de árvores e plantas de plástico.
Com “O Czar do Amor e do Tecno”, Anthony Marra escreveu uma sinfonia a todos aqueles que pereceram pela mão de um regime impiedoso, mas fá-lo trocando o registo factual pela vertigem da arte. Mesmo nos momentos mais devastadores, Marra consegue imprimir uma beleza sem limites, ao mesmo tempo que devolve à História todos os nomes que lhe foram apagados. Corajoso, original e muito engenhoso, “O Czar do Amor e do Tecno” mostra que a América tem mais uma voz literária universal que deverá ser seguida de muito perto. Livro do ano e está tudo dito.
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