“Foi então no momento em que no exterior os seus gestos autónomos se envolviam na tentativa de retirar a lama que se agarrara aos sapatos, raspando um sapato noutro com movimentos específicos, especializados mesmo; foi aí, nesse instante, mas num outro lado, no seu mundo interior, que Lenz tomou a decisão de abandonar por completo a medicina – nada mais havia a conquistar nesse campo – e de entrar no mundo da política, no «mundo dos grandes acontecimentos e das grandes doenças». Estava cansado de tratar com homens individuais e de ele mesmo ser um homem individual; aquela não era a sua escala; queria operar a doença de uma cidade inteira e não de um único e insignificante se vivo. Acima de tudo, queria sentir o prazer de dar aquela comida estranha que o poder dava aos seus soldados e funcionários, aquela comida de energia quase mágica, comida que saciava os estômagos da população de um modo não material, mas igualmente eficaz.”
O parágrafo acima transcrito pertence a “Aprender a Rezar na Era da Técnica”, livro de Gonçalo M. Tavares, em que um médico, cansado de ver a sua excelência confinada a uma sala de operações, decide entrar na política para alcançar o merecido estrelato.
PJ Harvey nunca foi médica mas, nos últimos anos, a sua veia criativa embateu de frente num muro político. E, se em “Let England Shake” originou um tremor de terra ao pé do qual o Brexit não passa agora de um menino ranhoso, no recente “The Hope Six Demolition Project” o olhar político e social estendeu-se à América, mergulhando noutras partes do globo como o Kosovo, o Afeganistão e, claro, Washington, lançando para o ar um desafiante “This is how the world will end” para afirmar que, no fim, não haverá grande volta a dar a isto.
Foi essa veia activista que PJ Harvey veio mostrar ontem a um Coliseu dos Recreios bem composto, num concerto com muita beleza mas pouco nervo, muito embalo mas poucas descidas e subidas, como naqueles funerais onde ninguém se chega à frente com um discurso pessoal sobre o morto deixando ao padre a palestra impessoal sobre a boa vida que nos espera a todos no além (ainda que, pelo menos para os católicos, não hajam relatos de virgens à espera).
Mesmo que não tenha sido apresentado como tal, estivemos praticamente diante de um PJ Harvey sings The Hope Six Demolition Project, com poucos desvios ao momento presente e ao último longa-duração. Nesta fase da sua carreira, Polly Jean trocou os graves pelos agudos, estando agora mais próxima de uma Kate Bush e de um lado mais operático e cénico. Apenas em “To bring you my love”, tema que leva já mais de duas décadas em cima mas amadureceu como o Vinho do Porto, PJ se transformou naquela figura espectral que nos faz atravessar o portão para o lado fantasmagórico da vida, um lugar feito de amor e sexo, de mentiras e desilusões, com muito sangue mais ainda mais saliva.
PJ Harvey parece ter expurgado a guitarra eléctrica da sua vida, mas não deixou de ser um poema visual quando, a certa altura, simulou uns acordes num instrumento invisível, num momento que pareceu ser de dança, memória e revisitação.
A banda de nove elementos, na qual estavam gigantes como John Parish ou Mick Harvey, esteve à altura deste sarau cívico, onde os sopros estiveram em alta, a percussão foi militar e os coros soaram belos e encantatórios, impregnados de muita espiritualidade e humanismo. Uma banda sonora para uma guerra real, vivida todos os dias em muitos pontos do globo terrestre.
Aqueles que foram movidos sobretudo pelos dois últimos discos de PJ Harvey, terão saído rendidos e de alma cheia. Quanto aos que esperavam uma raiva maior do que aquela que PJ tem emprestado às suas palavras, puderam confirmar, tocados pela beleza mas não sem uma certa tristeza, que o rock não anda decididamente a correr nas veias de Polly Jean. A política é uma coisa tramada.
Fotos cedidas gentilmente pela Everything Is New.
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