No princípio era o verbo, diz-se sobre o começo do mundo, mas em “Os figos são para quem passa” (Planeta Tangerina, 2016) há algo mais sobre o princípio dos tempos que, vai-se a ver, andavam à volta da ideia de anarquia:
“No princípio, o mundo era só um. Tudo era de todos, ninguém pertencia a nada, nada pertencia a ninguém.”
Nem casa, lugares marcados ou sequer dois dias iguais, um a seguir ao outro. E, para os animais, estava ainda muito longe de se pensar em lancheiras com o almoço para a labuta florestal, uma vez que a refeição estava à disposição a cada árvore que passava ou a cada rio que se cruzava.
Porém, tudo mudou por causa de um urso e de um figo que teimava em ficar maduro. E, verdade seja dita, por causa de uma barriga que roncava como um rádio FM mal sintonizado.
Ao ser ludibriado figo após figo, por distracções menores ou sonos maiores, o urso tentou construir um muro à volta da figueira, para que ninguém lhes deitasse e mão antes de ficarem como mel, prontos a descer goela abaixo. Até que um outro animal lhe atira uma máxima que, para os animais da floresta, seria como um mantra para a vida: os figos são para quem passa.
Neste hino à natureza – sobretudo à partilha -, escrito por João Gomes de Abreu e ilustrado por Bernardo P. Carvalho, somos levados a penetrar numa selva colorida, cheia de recantos e esconderijos, que se revelam atrás da folhagem que a envolve. Tal como se esconde uma outra máxima, descoberta depois de activado o caldo lacrimal (obrigado Samuel Úria): se há figos que são para quem passa, os melhores de todos estão reservados aos que por eles sabem esperar.
Sem Comentários