Embora se associe a figura de Kirk Douglas a um aspecto físico possante, não foi através da força bruta que o actor marcou um extenso cortejo de cinéfilos ao longo de várias décadas. Muito pelo contrário: são personagens como o Coronel Dax, papel que desempenhou em “Horizontes de Glória” (1957), que lhe conferiram uma imagem repleta de sensibilidade. Basta recordar a cena final: quando o Sargento Boulanger o informa de que o regimento terá de regressar ao campo de batalha – onde a morte será mais do que certa para muitos daqueles soldados -, o oficial não hesita em conceder-lhes mais alguns minutos de descanso na taberna, onde entoam, com a paz de espírito possível, uma canção popular.
Issur Danielovitch, o nome com que Douglas foi registado, nasceu a 9 de Dezembro de 1916, em Amsterdam, Nova Iorque, filho de emigrantes judeus russos de origem humilde. As dificuldades financeiras levaram-no a trabalhar desde cedo, tendo conciliado os mais variados empregos com os estudos, nomeadamente o curso de representação da Academia Americana de Artes Dramáticas. Após uma breve incursão na Marinha durante a Segunda Guerra Mundial, bem como uma curta carreira na Broadway, Douglas instalou-se em Hollywood, onde obteve o primeiro papel numa longa-metragem: “The Strange Love of Martha Ivers”, de Lewis Milestone. Contudo, foram sobretudo os filmes em que participou sob a direcção de Vincente Minnelli que lhe garantiram a consagração: “The Bad and the Beautiful” (1952), sobre um produtor de cinema sem escrúpulos; e “Lust for Life” (1956), onde vestiu a pele do célebre pintor Vincent van Gogh. Ambos os desempenhos foram reconhecidos pela Academia com nomeações para o Oscar de Melhor Actor.
Estavam abertas as portas para trabalhar com alguns dos melhores, nomeadamente o realizador britânico Stanley Kubrick, que o convidou para aquele que é tido como o seu papel mais lendário: Spartacus, o escravo que desafia o status quo durante o Império Romano. Estávamos em 1960, em pleno período de Caça às Bruxas, e Douglas não hesitou em sugerir o nome de Dalton Trumbo, incluído na lista negra devido à suposta ligação ao Partido Comunista, alegando tratar-se do argumentista ideal para o projecto. Trumbo, que se viu obrigado a escrever sob diversos pseudónimos ao longo de uma série de anos, acabou por ter o devido reconhecimento graças a este filme.
Porém, nem só de representação se reveste a carreira de Douglas: foi o autor da sua própria autobiografia, The Ragman’s Son, em 1988 – um grande sucesso literário -, e ainda revelou talento para a ficção, assinando os argumentos de “Dance with the Devil” (1990) e “The Gift” (1992). Foi também na década de 1990 que sofreu um dos seus maiores desaires: um ataque cardíaco quase fatal. No entanto, e apesar de ter ficado com a fala bastante afectada, continuou a representar, tendo contracenado com Dan Aykroyd, Lauren Bacall e Jenny McCarthy na comédia “Diamonds” (1999). Além disso, foi ainda nomeado para um Emmy pela sua participação no drama televisivo “Touched by an Angel” (2000).
Douglas dedicou também uma boa parte da sua vida à filantropia: através da Fundação Douglas, doou, juntamente com a segunda mulher, Anne, milhões de dólares a causas humanitárias. Aqui, a influência da mãe foi fundamental: “Sempre que possível, é importante ajudarmos as outras pessoas”, dizia-lhe ela. Um ensinamento que o marcou. Tal como Douglas nos marcou a nós, amantes de cinema e de histórias com carácter universal. O centenário está próximo e a comemoração de um momento tão especial impõe-se. À tua, Kirk!
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