Diz-se que há escritores que, se abandonarem o anonimato do papel e da criação, se sentem como peixes fora de água, incapazes de se manterem por muito tempo debaixo dos holofotes apontados pela opinião pública. Na segunda edição do Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos, Salman Rushdie mostrou que lida bem com o estrelato e que, apesar das críticas a Hollywood, poderia trocar a escrita pela arte da representação.
Numa conversa conduzida por Clara Ferreira Alves, que foi das redes sociais à religião, o grande prato literário foi “Dois anos, oito meses e vinte e oito noites” (Dom Quixote, 2016), o 17º romance de Rushdie que voltou a transportar o leitor para o universo dos seres fantásticos, povoado por fadas e criaturas mágicas e exóticas. “Fartei-me de dizer a verdade, era hora de inventar” depois de “Joseph Anton”, um livro que considerou estar relacionado com o seu novo romance apesar de ser exactamente o seu oposto.
Mesmo estando à distância de três décadas, Clara Ferreira Alves trouxe para a discussão “Versículos Satânicos”, o livro que em 1989 valeu a Rushdie o levantamento de uma fatwa por Ayatollah Khomeini, o líder supremo do Irão. Um livro que “fez de mim um escritor que não sou“, tendo Rushdie dito que, agora que está à porta dos 69 anos, é finalmente considerado um escritor “engraçado“. Quanto aos livros e para aqueles que ainda não se atreveram a mergulhar na sua obra, Rushdie deixou um conselho: “Penso que as pessoas deveriam ler a minha obra ao contrário da ordem cronológica“.
No que toca à preparação para a escrita, Salman Rushdie falou do que considera ser essencial: ouvir com atenção o que as outras pessoas fazem e pensam, de forma a criar personagens que não sejam iguais a quem sobre elas escreve. Um pouco como o faziam os escritores dos séculos XVIII e XIX, tendo Rushdie destacado Charles Dickens. Em suma, “para se ser um romancista é necessário sair da zona de conforto“.
A mudança para Nova Iorque parece ter sido decisiva para o rumo literário de Rushdie, uma cidade habitada pela diversidade cultural, algo que é, igualmente, marcante na nova literatura americana, pontuada por muitos escritores que fizeram da América a sua pátria. Uma cidade ideal para os escritores que saibam estar atentos, uma vez que “toda a gente está a contar a sua história em voz alta como se ninguém estivesse a ouvir“.
Em foco estiveram também as redes sociais. “No facebook toda a gente está feliz. Quando alguém fala de dor é quase indecente, impróprio”, disse o autor mostrando-se preocupado com o surgimento de uma geração que não compreende a ideia de privacidade e a importância da vida privada“. Um mundo que pode ser engraçado, mas apenas se não for levado muito a sério.
De regresso ao mundo dos génios – ou jinns – e ao seu último romance, Rushdie considerou que “os homens têm uma imaginação muito limitada no que toca a pedir desejos” e que, para que o realismo mágico realmente funcione – no seu último livro há, por exemplo, um jardineiro que descobre que os seus pés já não tocam no chão ou um bebé que identifica a corrupção com a sua mera presença -, há que pensar em todas as sua ramificações e levá-lo muito a sério.
No que toca ao realismo disse que, em tempos, não lhe pareceu mal o modus operandi de Franz Kafka: não explicar como nem porquê – veja-se o caso de “A Metamorfose”. Algo que mudou com o tempo e que lhe trouxe uma verdade para a escrita: apesar de nada ser “too crazy“, tanto as personagens como os espaços geográficos têm de ser credíveis. Exemplo maior será a trilogia de Tolkien intitulada “O Senhor dos Anéis”, que inventou não apenas um mundo como uma linguagem própria. “I miss the hobbits“, disse Rushdie, que brincou dizendo que, em A Guerra dos Tronos – série que adapta As Crónicas do Gelo e do Fogo de George R. R. Martin -, estes deram lugar ao sexo e a rios de sangue.
Não poderia faltar o tópico da religião, algo que Rushdie transportou para os anos 60, o período das drogas e das roupas foleiras, onde se lutava pelos direitos civis, o feminismo, o pacifismo e se achava uma brincadeira pensar que algum dia a religião pudesse ser dominante no mundo. Quanto à possibilidade de a religião ser retratada em cartoons – e aludindo ao episódio Charlie Hebdo – Rushdie vincou a sua posição: “Claro que podemos fazer pouco da religião, porque esta é um disparate“.
Considerando que vivemos um período negro da história humana – e apesar de negar que poderemos um dia chegar ao estado totalitário e sem réstia de esperança de “1984” -, Salman Rushdie disse haver nos dias que correm um certo desapontamento com a democracia, propício a que surjam demagogos e gente sem escrúpulos como Boris Johnson – “False prophet? False, yes” -, um dos responsáveis por ter levado a Inglaterra ao suicídio europeu. Ainda assim e no meio do negrume, Rushdie deixou no ar a ideia de mudança: “A História não é inevitável, muda de direcção constantemente“.
Falando da grande literatura – aqui brincou dizendo que “Moby Dick nem sequer mudou a forma de se pescar” -, Rushdie disse que esta deveria ser – palavras de Joyce – “estática e não dinâmica“, levando o leitor a espaços inabitados e saindo deles uma pessoa transformada, tal como a sua visão do mundo. “A literatura funciona na incerteza, não no discurso político“, rematou Rushdie uma actuação que, se por enquanto não vai entrando mas contas do Nobel da Literatura – respondeu a esta questão fingindo ressonar -, daria pelo menos direito a uma estatueta dourada.
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