Poderá a norma de uma vida ser resumida com o contraponto de sofrimento e felicidade? Posto a nu, mesmo que se repita que as coisas nunca são simples, ou lineares, a base da condição humana, sem escapatória enquanto estamos vivos e conscientes, é, no seu âmago, muito directa. Um alternar entre ganho e perda, sabendo que o ganho é efémero e a perda, definitiva.
No seguimento da parceria Levoir/Público, intitulada “Novela Gráfica”, surge, ao segundo volume, a purga desta dicotomia existencial, que parece ser bem compreendida ou estar mais embutida na mentalidade do extremo oriente. “Terra de Sonhos”, do acarinhado autor japonês Jiro Taniguchi (vencedor do Prémio Clássicos da Nona Arte Amadora BD em 2015, entre um acumular prévio de outros galardões internacionais), oscila, durante os três primeiros capítulos, entre um murro no estômago e a carícia de mais singela ternura.
Nesta sequência, que ocupa boa parte do livro, seguimos um casal de classe média sem filhos, que deposita carinho de progenitor no cão, velho companheiro que cumpre a sua passagem de vida e está moribundo. A dose de realismo trespassa as margens (livres) do estilo mangá, nem chegando a dar margem para juízos de valor sobre o universo alargado e diversificado da banda desenhada nipónica que, como tudo, não se generaliza pelos padrões altos de qualidade. A perda é sentida sem destrinça entre o conceito limitado de ser racional e irracional, justificação que no nosso quotidiano permite imoralidades. A crueldade da doença, e por sua vez do sofrimento animal, é nobremente carregada pela dignidade que permite a boa vontade humana. Mas não se trata apenas disso, é duro na ambiguidade moral que gera a questão do apego e egoísmo em detrimento de terminar rapidamente o sofrimento de quem já não tem remédio.
Fala-se sobre o totem animal em “Terra de Sonhos”, uma presença simbólica constante, que gera conforto, na falta de melhor termo, espiritual. Na sequência de uma grande perda, surge a nova oportunidade de seguir em frente. Certo que poderá ser visto como uma substituição, mas não estaremos em constante apego de momentos e vontades que outrora nos deixaram felizes? A gata, novo centro de atenções do casal, dá à luz uma ninhada, e novas questões se colocam aquando da separação dos filhotes da mãe. De novo, a preocupação do autor com a exposição de tabus. Não existem decisões correctas: são tomadas em erro e corrigidas a partir deste.
No desfecho da história, a presença animal dá lugar à de uma criança, Akiko, sobrinha do casal e que com eles irá passar uma temporada refugiada da família mais próxima. Já num plano de superação individual de cada um dos personagens, notamos que as diferenças nos laços que criamos (entre criaturas), de apego e amor, são transversais à nossa vontade dar, cuidar e zelar o que amamos.
Surge, no quinto capítulo, “A Terra Prometida”, a história do alpinista nipónico Kawamura Keisuke. Desligado da narrativa anterior e em jeito de ode à ligação espiritual entre homem e animal, trata-se de um conto sobre o uno primitivo que se encaminhou até aos nossos dias. O plano alegórico toma conta do registo biográfico e é rematado pelo poder simbólico de uma escalada nos Himalaias – uma perspectiva ampla do mundo circundante, logo experiência transcendente.
Antes e depois. A sensibilidade de Jiro Taniguchi traduz-se em maturidade, maturidade essa que incute por via indirecta. Questões difíceis, sem respostas certas. “Terra dos Sonhos” é, por isso, um rito de passagem.
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