Costa pacífica do Canadá. Os pertences da residência de praia de Malcolm Lowry e a esposa, Margerie Bonner, estão em chamas. Lowry garante ao editor que salvou as mil páginas de “Debaixo do Vulcão”, mas que a continuação da visionária trilogia dantesca, “Paradiso” (na lógica de paraíso, purgatório e inferno), não tem salvação. Largos anos após a sua morte em 1957, a primeira esposa, Jan Gabrial, afirma ter em sua posse o manuscrito inédito. Após a morte desta, o exemplar encontra alento no depósito da New York Public Library, caindo assim na atenção dos estudiosos de Lowry.
Em 2014, “Rumo ao Mar Branco” (Livros do Brasil, 2016) – “In Ballast to the White Sea” no original) – é publicado pela primeira vez na língua original. Chega este ano ao meio editorial português pela Livros do Brasil, que antes da segunda vinda enquanto chancela já havia publicado Lowry – falando de ressurreições, o reencontro parece apropriado.
As revisões intermináveis caracterizavam o modus operandi do autor. Se a esse comportamento obsessivo acrescer um manuscrito incompleto, imaginamos a frustração; o pleno delírio. “Rumo ao Mar Branco” é testemunho da injustiça da aleatoriedade (o consumo parcial do manuscrito pelas chamas) e da perda irremediável de um trabalho ambicioso em envergadura, que serviria para consolidar o génio do autor.
Existem dois tipos de leitores: os que, mediante a incompreensão de um trecho para o qual era essencial informação anterior que passou completamente ao lado, voltam atrás; aqueles que aceitam a sua ignorância em prol do ritmo contínuo e fluido: seguem sempre em frente, mesmo que signifique sacrificar a compreensão global da obra. “Rumo ao Mar Branco”, obra fragmentária, não será gratificante para o primeiro tipo de leitor. Haverá vezes que se recua, apenas para obscurecer mais a obra. Ou seja, sendo a busca pela coesão do enredo uma impossibilidade, a prosa de Lowry orienta-nos personagens e modelos de fábrica, mas o valor literário por excelência jaz na pujança especulativa dos diálogos sem qualquer compromisso com o realismo, carregados de erudição que levantam sempre questões em detrimento das respostas. A relação conversada entre Sigbjørn e Nina, por exemplo, é antes sobre ruminação filosófica (sobre tudo e qualquer coisa), sobre artifícios de causa-efeito para a progressão de uma trama romântica. Em Lowry, as ideias, conscientes da História, são mais corpo que preenche; ficam mais que as acções.
Numa obra que pelas circunstâncias do mundo editorial contém o rótulo de incompleta, mas que se chega a ler como rematada, é preferível valorizar a metáfora; as referências textuais tão bem apontadas por Daniel Jonas no prefácio; ou as “incertezas ideológicas” do autor, como afirmou Bryan Biggs. Nisso, “Rumo ao Mar Branco” é uma experiência enriquecedora. Convida-nos à segunda leitura para sair do labirinto, com esperança de que haja saída na destreza poética de Lowry – uma ilusão de superação.
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