Parafraseando Santo Agostinho, “a vida é um livro e quem não viaja lê apenas uma página.” Quantas vezes não viajamos através da leitura, imaginando e recriando cenários, paisagens e gentes improváveis ou já conhecidas. No final fica a certeza de que viajar é experimentar e que a experiência é reflexão, conduzindo-nos a descobertas inusitadas.
Feitas estas considerações iniciais podemos preparar a bagagem, no ideal reduzida, não sendo exigível consulta do viajante ou toma prévia de anti-maláricos ou anti-diarreicos, se conseguirmos prescindamos de smartphones e tablets, levando apenas o indispensável para que não nos declarem desaparecido, e nos entreguemos ao imprevisto e à descoberta.
Em “Destinos em falta para o passageiro distraído” (Marcador, 2016), Luís Filipe Borges apresenta muito mais que destinos ou roteiros de viagem. Revela-se um livro de memórias com valor auto-biográfico e sociológico, especialmente quando se detém nas estadas numa das ilhas açorianas, fazendo jus à herança e identidade que transporta consigo, resistente ao mergulho urbano e à submersão nas novidades cosmopolitas do continente e do mundo.
As viagens por paragens como Nova Iorque, Madrid, Dubai, Bali, Roma ou Havana revelam-se momentos de alteridade, de contacto com o outro e de construção de um olhar sobre o mesmo. As preocupações com o respeito pela diferença, contenção de etnocentrismos e identidades exacerbadas e pretensiosas estão bem presentes.
Muitas vezes a literatura de viagem revela tanto ou mais do universo cultural do viajante do que do lugar visitado. Com Luís Filipe Borges tal acontece amiúde quando, volta e meia, nos deparamos com o valor afectivo da descrição de cada destino, da sua adjectivação emocional (ou emocionada), do seu impacto por referência às origens lusas e, em particular, ao amado arquipélago açoriano, ao qual repetidas vezes regressamos, acompanhando-o como se efectivamente estivéssemos a regressar a casa, às ruas pouco movimentadas, quase silenciosas, às gentes taciturnas mas presentes, por contraponto com os destinos quase sempre longínquos, onde a distância se sente e se respeita para além das milhas necessárias para lá chegar e dos mesmos regressar.
É impossível dissociar o relato de viagem das motivações que lhe estiveram subjacentes, a sua finalidade. Através destes relatos aprende-se muito sobre a trajectória de vida do viajante Luís Filipe Borges, os seus vínculos, as relações que estabeleceu e o que permaneceu após o retorno.
Do leitor espera-se que esteja disposto a dialogar com o autor, acompanhando os relatos que se sentem interiores, por vezes ao género de memórias. Se levarmos em conta o tempo destes relatos sentimos que alguns foram escritos ex aequo com a experiência, ao género de desabafo ou forma de gestão de emoções; noutros sente-se o relato distanciado, ponderado e reflectido.
Percebe-se que as descrições são o resultado de um olhar, enriquecidas pelo contexto em que são escritas. Acresce-lhes o valor de não serem relatos híbridos, antes testemunhos providos de valor humorístico – não fora Luís Filipe Borges comediante, argumentista e apresentador, com uma vasta produção que passa pelos guiões televisivos, o teatro, as crónicas e os contos: “Se viajar para o calor, leve um casaco. Se viajar para o frio, leve um calção de banho. Nunca se sabe. E homem prevenido teu amigo é. Mais vale um pássaro na mão do que águas mil. Sol na eira, espeto de pau.” Ou ainda “Se fizeste uma escala de quatro horas em Istambul e saíste do aeroporto no AutoBus, paraste num arredor, viraste na primeira esquina e comeste Kebab, não, não podes contar no regresso que conheces a Turquia. Seria o mesmo que um americano chegar à Portela, apanhar o Metro até à Pontinha, engolir uma bifana no primeiro tasco e dizer na volta que conheceu Portugal”.
Há imensas razões pelas quais lemos e estas influenciam, muitas vezes, o que lemos e como o fazemos. Por agora e sempre, podemos simplesmente ler para viajar.
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