Francisco Alonso, “um engenheiro de vinte e quatro anos sem qualquer experiência prática“, tem como missão reconstruir o Castelo dos Mouros, em Sintra, dividindo o tempo entre a sua mulher doente – e um casamento por interesse – e a relação amantizada com a criada. Durante as escavações, Francisco encontra uma caixa que irá mudar as vidas de muita a gente – inclundo a sua – e, nesse momento em que “Terra Fresca” (Quetzal, 2016) grita Pandora, o livro de João Leal salta a vedação do real para o fantástico, transformando aquilo que começara como um romance de gerações num exercício individual sobre a fé.
Francisco assumirá uma dupla maternidade, vendo ambas as filhas nascerem tocadas por uma mesma maldição: terem o braço direito inerte. Uma maldição que remonta a uma estranha e muito antiga lenda, conhecida como “a mão de Ezequiel”:
“A Mão de Ezequiel era uma daquelas relíquias do estilo mecha de cabelo do Santo António, dente de Maomé ou pedaço de casca de árvore onde Buda se encostava. Era uma mão selada numa caixa de chumbo com uma argola e teria pertencido a alguém chamado Ezequiel, a quem os anjos tinham ensinado a sua língua escrita e falada e que, segundo consta, serão diferentes uma da outra. Tinham-lhe dado a possibilidade de criar pessoas, desde que o escrevesse com a mão direita. Nunca usou esse poder até escrever a existência de um pequeno grupo de homens que pretenderia que o ajudassem a salvar a sua amada de uma morte mais que certa. A lenda diz que os resultados dessa sua interferência foram tão negativos, com a morte de todos os que amava, que ele cortou a sua própria mão e a meteu dentro de uma caixa, de um cubo hermético de chumbo maciço, que passou a carregar às costas, amarrada por correias, para que nunca se esquecesse de que fora o causador da desgraça“.
Atravessando cerca de oitenta anos e situado geograficamente entre Lisboa e Sintra, a Finlândia e os Estados Unidos, “Terra Fresca” aborda o flagelo da tuberculose, os segredos familiares, a crendice popular e a religião, tudo com um certo toque Frankensteiniano e a implacabilidade de George R. R. Martin.
Neste livro que questiona o livre-arbítrio, João Leal, que em tempos estudou Teologia – curso que não chegou a terminar –, aborda entre a crença e a dúvida o papel da religião no mundo, fazendo de cada homem um pedaço de massa fresca “preparando a germinação de sabe-se lá o quê“. Um livro que se lê – e que parece ter sido escrito – como um salto de fé.
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