A data simbólica que se escolheu para a primeira ante-estreia de “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira – 25 de Abril de 2016 (Grande Auditório da Culturgest, no âmbito do IndieLisboa) -, terá sido propícia a uma reflexão profunda à volta da frase feita de onde viemos e para onde vamos.
Preto e branco. Feridas de guerra com sangue negro. Uma bandeira da República Portuguesa em que o brasão de armas, o verde e o vermelho estão adulterados pela escala de cinzentos. Uma moldura com um retrato de António de Oliveira Salazar encaixada numa sanita de fossa. A indissociável voz literária de António Lobo Antunes, mesmo antes de ser autor publicado, em protesto, quebrando qualquer estreiteza à militância e declarando o mal da guerra como universal. O absurdo da violência animalesca suplanta qualquer virtude humana da razão. É para Salazar que nos viramos à procura de apurar responsabilidade: ouvimo-lo discursar, à mistura com a desoladora fotografia monocromática do filme, e percebemos, à luz dos nossos dias, o quão anacrónica seria a sua retórica hoje.
Não se trata de um filme colado às generalizações pejorativas do cinema português, daquele que ao mesmo tempo singra através dos mais conceituados festivais pelo mundo. Menos hermético que o trabalho dos seus colegas de profissão que ganharam relevo na última década, Ivo M. Ferreira pode muito bem ser o homem capaz de suscitar maior aceitação através de uma linguagem cinematográfica cuidada e moderna, sem medo de pedir emprestado aos vícios do cinema comercial para domá-los e reformulá-los a gosto. Câmara irrequieta (raramente trémula, note-se) que se sente solta em movimentos delicados de deslize, que sobrevoa, que nos aperta junto dos personagens sem receio de grandes planos e da intimidade que nos dificulta os olhos nos olhos; sobretudo, cenas que raramente se estancam rápido ou se alongam em planos-sequência dados a grande virtuosismo.
Já o nosso quase-sempre-nunca prémio Nobel da Literatura, António Lobo Antunes, dá, sem saber ou sequer sonhar, uma goleada capaz de envergonhar os narradores-escriba de Terrence Malick. Quando Lobo Antunes expõe as vísceras, sente-se logo a natureza anti-literária de um guião, isto em relação às parcas falas que são trocadas e que são, presume-se de forma consciente, um mero pano de fundo. O papel do autor das cartas que inspiraram o filme – chamem-lhe o termo abrangente, escritor, chamem-lhe Poeta – é preponderante. O sumo destas, com tempo de antena considerável e narradas quase sempre em tom doce, feminino, por serem dirigidas à esposa de António, são capazes de sensibilizar até a personalidade mais frígida e levá-la a crer que o amor puro e imutável existe e é atingível.
Existem, contudo, algumas opções dúbias que não causam indiferença. Ricardo Pereira não consegue deixar o registo novela da Globo, e Miguel Nunes, ainda associado a Morangos com Açúcar IV, tem o rosto e expressão de quebra-corações, mas falta-lhe uma aura incendiária, sobretudo tratando-se de António, o protagonista. Já as cenas “outro lado do espelho” que contrastam com o campo de batalha angolano, ou seja, Margarida Vila-Nova enquanto Maria José, esposa de António, deambulando, só e bucólica, no interior de um apartamento em Lisboa, pouco trazem à dinâmica do filme que não um erotismo que vulgarmente se dirá “de bom gosto”, que só é mesmo arrebatador pelo complemento do texto original de Lobo Antunes.
Nos contrastes tonais do preto e branco, “Cartas da Guerra” sugere o luto pelos anos fatídicos da Guerra do Ultramar. Igualmente presente está a ideia que a rotura com os demorados anos do colonialismo foi também precedida por vivências importantes entre uma fasquia significativa de portugueses e população autóctone, distinta de qualquer outra relação que tenha existido nesse processo de séculos de aculturação e miscigenação de povos africanos e europeus. Sem enveredarmos por juízos de valor e anacronismos, digamos apenas que foi uma Era que teve o seu merecido fim.
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