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O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio, Deus Me Livro, Alfaguara, Charles Bukowski
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“O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio” | Charles Bukowski

Por Paulo Ribeiro da Silva · Em 25/07/2016

“Acho que as pessoas que escrevem diários e tiram apontamentos sobre aquilo que pensam são uns idiotas. Só estou a fazer isto porque alguém me sugeriu. Como veêm, nem sequer sou um idiota original. O que torna tudo mais fácil. É só deixar correr. Como um cagalhão quente a descer por uma colina.”

Charles Bukowski. Um dos escritores mais míticos e profícuos da geração Beat e dos poucos que sobreviveu nas décadas seguintes com a sanidade suficiente para contar a história.

Entre cerca de meia centena de publicações (prosa e poesia), guiões para cinema e artigos diversos, manteve uma influência constante sobre gerações de escritores, que infrutiferamente o emularam ou se “inspiraram”/“homenagearam” a sua obra e estilo inconfundíveis.

“O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio” (Alfaguara, 2016) colige alguns registos diarísticos referentes ao período entre 1991 e 1993, os anos anteriores à sua morte em 1994, vítima de leucemia.

Acima de tudo, Bukowski apresenta-se como alguém para quem a escrita é o Santo Graal, a sua religião, que o mantém vivo, activo e produtivo.

A sua rotina diária passa obrigatoriamente pela rotina matinal do jogo, das apostas nas corridas de cavalos, entre dias melhores (em que ganha qualquer coisa) e piores, onde personagens inusitadas, como o Louco dos Gritos ou o Olhos Zangados, se intrometem no seu sossego misantropo, de apostas cuidadosas, de tal forma marcado pela pobreza do passado que não consegue ter perdas ou ganhos de monta.

À noite, frente ao computador, aproveita a companhia da música clássica que toca na rádio (a única que suporta e colecciona como cromos de basebol) para pôr a escrita em dia, entre reflexões avulsas, desabafos e algumas tiradas a que, com a mesma satisfação dos tempos áureos, atribui o brilhantismo que merecem.

Esqueçam a humildade do escritor dedicado ao seu ofício ou a análise detalhada do processo de escrita, trabalhado à exaustão durante anos de dedicação à causa. Aqui não há tangas, presunção ou qualquer traço de hipocrisia.

As palavras são-lhe familiares como o ar que respira e recusa-se ceder à facilidade de se repetir e se limitar a corresponder às expectativas, procurando a frase nova e escrevendo quase febrilmente (com as limitações naturais das suas provectas sete décadas), “numa dança com a morte” que insiste em comandar.

A Morte paira na sua mente e na sua Arte, como se adivinhasse a sua proximidade e a consciência apurada dela e de si, aguçam o seu mau génio e alertam-no para a sua finitude.

A velhice, que lhe rouba disponibilidade e acuidade, ainda o inspira a tentar a superação.

“Cada frase é um novo começo.”

Os pedidos inusitados dos fãs, que se introduzem na sua casa sob os pretextos e argumentos mais surreais, como uma peça jornalística ou um ensaio fotográfico, roubam-lhe tempo para a sua “oração” diária, mas divertem-no de sobremaneira, pelo absurdo da fama e pelo retrato óbvio de uma certa obsessão pelo contacto com os “famosos” que representam, como se o talento e a visibilidade mediática se pudessem transmitir por osmose.

O pessimismo reina na sua perspectiva do Mundo, com o cinismo e a ironia que sempre o acompanharam. As reminiscências do passado de glória e pura fanfarronice (embora mergulhado na penúria e na instabilidade laboral constante) são frequentes e trazem consigo a eloquência que só as memórias bem regadas a álcool e outros aditivos são ainda capazes de espoletar.

“O desafio e a glória. A electricidade. Foda-se, a vida era boa, a vida era divertida. Éramos todos grandes homens, ninguém se metia connosco. E para dizer a verdade, sabia muito bem. Álcool e umas quecas. E muitos bares, bares cheios de gente.”

Apesar do ambiente onde a sua escrita floresceu, Bukowski soube sempre manter-se à parte da literatura mais “engagé” com os tempos conturbados que os EUA viviam, principalmente na década de 60 do século passado. A sua opção foi sempre “brincar com as palavras”, mas também urdir um manto protector da realidade, com a qual não se queria misturar.

“Eu não andava à procura de justiça nem de lógica. Nunca andei. Talvez seja por isso que nunca escrevi como protesto social. (…) É impossivel fazer uma coisa boa a partir de algo que não existe. Aqueles tipos queriam que eu mostrasse medo, (…) Mas a única coisa que eu sentia era nojo.”

Os seus dias são animados pelas pequenas epifanias: uma nova sinfonia que nunca escutou, uma inesperada vitória na pista de corridas ou uma tirada certeira nos escritos nocturnos.

Nos bons momentos, para combater a amargura, dizia: “Quero compreender a vida, a felicidade da vida”. Mas, logo em seguida, regressa tranquilamente ao seu lugar seguro: o pessimismo endémico e trocista. “Caminhamos em direcção à miragem, desperdiçando a nossa vida como toda a gente.”

Embora consciente do seu valor, encara a escrita e os seus colegas de ofício com as devidas distâncias e até algum desdém. O seu despretensiosismo crónico e a sua atenção ao que o rodeia impedem-no de sacralizar a escrita, que apelida de irrelevante, e os escritores, verdadeiros “intrujões” pedantes, vivendo frequentemente de uma falsa imagem de liberdade e libertinagem, financiada nos bastidores por rendimentos de “heranças” obscuras e mães extremosas de bolsos fundos.

“Somos feitos de papel. Existimos graças à sorte, no meio de percentagens, temporariamente. E isso é a parte melhor e a parte pior, a questão temporal. E não há nada a fazer. (…) Podemos mudar a nossa aceitação, mas talvez isso também seja errado. Se calhar pensamos demais. É preciso sentir mais, pensar menos.”

O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio, Deus Me Livro, Alfaguara, Charles BukowskiComo qualquer ser pensante, o americano contradiz-se constantemente. Mas opta por avançar e evitar conceder qualquer espécie de margem ao imobilismo e a inércia, para que tanto a vida como a escrita mantenham o tónus e a imprevisibilidade, deixando o instinto guiar a inspiração. Se o consegue ou não, isso já é outra história. Mas tal intento, já depois dos 70 anos, é refrescante e devolve-nos alguma esperança no que existe para além do mofo a que tresanda tanta da literatura e da narrativa biográfica, quase hagiológica, que ainda nos impõem como verdadeira e cool para aumentar as vendas dos mesmos livros de sempre, reeditados periodicamente, com títulos curtos e capas novas, talvez amarelas, quem sabe.

“É preciso chafurfar na lama de vez em quando. (…) Depois de ter passado pelo pior, conseguimos escrever de maneira mais feliz e libertadora.”

Numa altura em que as referências literárias lhe são já indiferentes, resta-lhe o consolo da rotina – “um lugar onde ir, uma coisa para fazer” – para esquecer ou superar o medo da solidão total e derradeira, da “morte a morder-me os calcanhares”.

“Agora a minha maior influência sou eu”; “Era bem melhor quando era capaz de imaginar a grandeza dos outros, mesmo quando ela nem sempre existisse.”

Charles Bukowski, o escritor, provou, sem sombra de dúvida, que o mundano, em todo o seu esplendor, pode ser tão literário e poético como qualquer obra do cânone ocidental.

Charles Bukowski, o homem, despe-se e despede-se neste pequeno opúsculo, agarrando-se às derradeiras fímbrias de uma vida e obra já míticas, com a ironia seca, a linguagem livre de preconceitos e o humor deprecatório que fizeram, fazem e farão por muitas décadas as delícias dos leitores.

Não é um epitáfio per se, mas uma pérola inesperada que nos relembra porque ainda vale a pena viver mais, viver melhor, falhar, lutar, vacilar, lutar melhor, falhar outra vez, perder e talvez, com sorte e suor e amor e dedicação ao que nos é sagrado, vencer o inevitável Nada final (perdão Beckett, não é plágio, é inspiração…).

“Que se lixem os deuses, que se lixe este jogo.”

Charles Bukowski venceu, por K.O..

Game Over.

“Está uma porta aberta algures e estou aqui a morrer de frio, mas não me levanto para a fechar porque as palavras estão a fluir e isso dá-me demasiado prazer para conseguir parar. Mas, porra, é o que vou mesmo fazer. Vou levantar-me, fechar a porta e mijar.

Pronto, já está. Já fiz as duas coisas. Até vesti uma camisola. O velho escritor veste uma camisola, senta-se, olha para o ecrã do computador e escreve sobre a vida. Haverá coisa mais sagrada do que esta? E, meu Deus, já pensaram na quantidade de mijo que um homem produz ao longo da vida? Quanto come e quanto caga? Toneladas. É horrível. O melhor é morrermos e sairmos depressa daqui, estamos a contaminar tudo com as coisas que expelimos. Todos, nem as bailarinas escapam. (…)

Deve ser estranho viver comigo. Para mim é.

Boa noite.”

AlfaguaraCharles BukowskiO capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio

Paulo Ribeiro da Silva

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