É um facto que, em Portugal, as edições literárias andam ao ritmo da impressão de revistas cor-de-rosa, seja com os livros de auto-ajuda, os policiais ou a literatura portuguesa (só para apontar alguns pontos geográficos). Há, contudo, uma área que tem ficado um pouco esquecida, ainda que os últimos anos tenham trazido poucas e boas notícias, com a publicação de títulos como “Apenas Miúdos”, de Patti Smith ou, mas recentemente, “A Miúda da Banda”, assinado por Kim Gordon.
Há, porém, um lançamento recente que merece honras de primeira página, e que faz o leitor regressa ao Rio de Janeiro e aos anos 50 e 60, altura em que começou a ser desenhada a história de uma geração farta de samba: “Chega de Saudade” (Tinta da China, 2016), com o sub-título A Histórias e as Histórias da Bossa Nova.
Seria Juazeiro uma espécie de New Orleans brasileira no ano de 1948? Talvez nem tanto, mas a verdade é que, nos tempos dos altifalantes, do seu Emicles e da amplificadora ou dos avisos que soavam às onze da noite com ameaças de cortes de energia, “Juazeiro era uma cidade de 10 mil habitantes, entre os quais um garoto de dezassete anos que todos chamavam de Joãozinho da Patu“. Um garoto que, mais tarde, iria triunfar com o nome de João Gilberto.
Farnésio Dutra tinha tudo menos um nome de artista, razão pela qual decidiu adoptar o muito castiço nome de Dick Farney. Farney viajou em 1946 para os Estados Unidos da América em busca de fama, depois de no Brasil ter caído nas boas graças nacionais após se ter atirado a uma versão de “Copacabana”. E, se a verdade é que poucos vaticinavam um grande futuro a Farney, este acabou por se tornar uma espécie de Sinatra com sotaque e, se não regressasse ao Brasil em 1948, quem sabe se não se teria tornado um ícone musical de proporções mundiais.
Mas onde terá nascido o clique que deu origem à Bossa Nova, essa espécie de revolta indie perante o festivo samba? Talvez quando João Gilberto, ao se atirar a “Chega de Saudade”, inventou um novo jeito de cantar e tocar, fazendo com que o violão deixasse de ser considerado o instrumento maldito. Como se lê a certa altura, “nenhum outro disco brasileiro iria despertar em tantos jovens a vontade de cantar, compor ou tocar um instrumento.”
Em “Chega de Saudade”, boate por boate, história por história, reconstrói-se a vida cultural carioca da época da Bossa Nova, em histórias que, apesar de biográficas, se lêem como pequenos grandes romances. Para contar tudo isto, Ruy Castro ouviu dezenas dos seus participantes, fossem eles compositores, cantores ou instrumentistas, bem como muitos dos amigos e inimigos de todos eles.
Por estas páginas passam mitos como João Gilberto, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Newton Mendonça, Nara Leão, Carlinhos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Maysa, Johnny Alf, Sylvinha Telles ou Elis Regina, bem como alguns seguidores que por eles foram tocados como se tivessem batido um papo com a divindade. Um livro que, acompanhado de muitas e preciosas fotografias, recupera, homenageia e documenta um dos mais vibrantes períodos musicais da história universal da música, com o epicentro localizado no Brasil carioca.
Ruy Castro (n. 1948), que esteve presente na edição de estreia do FOLIO o ano passado, começou como repórter em 1967 e passou por todos os grandes meios da imprensa carioca e paulistana tendo, a partir de 1990, passado a dedicar-se aos livros. Espera-se agora que a Tinta da China possa aproveitar o embalo e publicar, do mesmo autor, as biografias de Carmen Miranda e, mudando de universo, as de Garrincha e Nelson Rodrigues. E, se não for pedir muito, a biografia de um mito chamado Tim Maia, assinada pelo também brasileiro Nelson Motta.
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