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As coisas que os homens me explicam, Quetzal, Deus Me Livro, Rebecca Solnit
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“As coisas que os homens me explicam” | Rebecca Solnit

Por Paulo Ribeiro da Silva · Em 22/06/2016

“O feminismo, como comentou a escritora Mary Sheer, em 1986, «é a ideia radical de que as mulheres são pessoas.»”

Feminismo. Palavra carregada de simbolismo, que ainda faz tremer homens, algumas mulheres e bastantes conservadores, pregadores e outros quejandos. Rebecca Solnit é uma voz incómoda para nós, homens, porque nos relembra uma verdade que todos conhecemos, perpetuamos e pouco fazemos para modificar: as mulheres ainda são consideradas seres inferiores em todos os contextos do nosso quotidiano. Em casos mais extremos mas não menos familiares, são tratadas como seres descartáveis, como nas situações de violência doméstica e crimes sexuais.

Embora o contexto social referido em “As coisas que os homens me explicam” (Quetzal, 2016) seja o norte-americano, nada remete para uma qualquer realidade distante, sendo antes extensível a qualquer país ocidental desenvolvido, o que torna a sua leitura frequentemente dolorosa e preocupante, mas também divertida e desafiante.

O mero facto de Solnit existir, transmite-nos alguma esperança e alívio, pela tenacidade com que se faz notada e escutada, pela pertinência da sua argumentação e pela inteligência que transparece da sua escrita.

O título da obra poderá apontar para o clássico livro de auto-congratulação dirigido ao público feminino, variações da ideia-base “os homens são uns néscios imundos” distribuídas por umas dezenas de páginas, mas nada poderia estar mais longe da verdade.

Sem perder a toada marcadamente feminista e humanista do seu discurso, Solnit escreve com o cuidado de escapar à futilidade, ao argumento fácil e à preguiça intelectual das generalizações, cuidadosamente apontando excepções e contradições, destacando problemas e contrabalançando-os com evolução, contextualização sociológica e histórica e esboços de soluções e respostas.

O (bom) humor e a ironia são um bem-vindo bónus, contribuindo para tornar acessíveis a qualquer leitor assuntos nem sempre fáceis ou consensuais. Frases como “Pensem na quantidade de tempo e energia que teríamos a mais e que poderíamos canalizar para outras coisas importantes, se não estivéssemos a tentar sobreviver” são paradigmáticas do seu estilo provocador e corrosivo, enquanto nos deixam a pensar no quanto contêm de real.

Outro traço distintivo do seu estilo é a capacidade de compreender o fenómeno de perpetuação da subalternização da mulher de forma abrangente, incluindo as mais diversas áreas da cultura e sociedade, com especial incidência nos media. “Temos mais de 87000 violações por ano neste país todos os anos, mas cada uma delas é invariavelmente descrita como um incidente isolado. Os casos são tantos que formam uma mancha diante dos nossos olhos, mas quase ninguém os relaciona uns com os outros ou dá nome à mancha”.

A sua influência como ícone cultural e mediático atingiu o zénite com a cunhagem da palavra “mansplain”, com origem num ensaio que escreveu em 2008 e dá título a este livro. A história real, que o ensaio descreve e de que parte para abarcar uma realidade bem mais vasta, que envolve a arrogância masculina em todo o seu esplendor, é hilariante, pelo que o prazer da sua descoberta fica reservado ao leitor.

Quanto ao vocábulo, Solnit expressa sentimentos ambíguos e contraditórios. Apesar de um mal disfarçado orgulho na façanha, recusa qualquer crédito na sua criação e revela algum desdém na sua utilização, pela sua carga demasiado generalizante e depreciativa. No entanto, não resiste a uma achega mordaz: “Se isso não está suficientemente claro no artigo, deixem-me dizer que adoro que as pessoas me expliquem coisas que sabem e me interessam, mas que ainda não sei; quando me explicam coisas que eu sei e eles não é que a conversa corre mal.”

O objectivo da sua escrita não é ferir susceptiblidades, embora, atendendo às temáticas em causa, tal se torne inevitável. Reiteradamente retoma esse desígnio com acertadas ressalvas, mais por honestidade intelectual do que por qualquer outro motivo. A pertinência da sua reflexão é reveladora e surpreendente, pela capacidade de ver além do óbvio e, para além de expor e denunciar realidades que poucos assumem, conseguir criar associações inesperadas entre âmbitos aparentemente inconciliáveis, como o feminismo e as evoluções recentes no casamento entre casais do mesmo sexo. “As revoluções começam, acima de tudo, pelas ideias” e “a libertação é um processo contagioso”.

As coisas que os homens me explicam, Quetzal, Deus Me Livro, Rebecca SolnitNo caso do casamento nos casais do mesmo sexo, Solnit habilmente desmonta o argumento de que se tratou de um mero processo de alterações legislativas e campanhas massivas conducentes a esse resultado. Superando o meramente contextual e efémero, Solnit atribui estas mudanças à “transformação da imaginação que levou ao declínio da ignorância, medo e do ódio chamado “homofobia”(…) catalisado pela cultura e promulgado por inúmeras pessoas queer que saíram da caixa chamada “armário” para se assumirem em público”.

Outro aspecto essencial foi a quebra da hegemonia masculina na relação de poderes dentro do casal, operada pelo movimento feminista. Segundo a americana, “as feministas arrancaram o casamento do sistema hierárquico (…) e reinventaram-no como uma relação entre iguais”. Numa análise mais profunda conclui: “As pessoas que se sentem ameaçadas pela igualdade no casamento sentem-se, ao que tudo indica, tão ameaçadas pela ideia de igualdade entre casais heterossexuais como entre casais do mesmo sexo”. “Um casamento entre pessoas do mesmo sexo é inerentemente igualitário (…) regra geral, trata-se de uma relação entre pessoas que estão em pé de igualdade (…) livres de definirem os seus próprios papéis”.

Perante estas realidades, Solnit invectiva constantemente o leitor a fazer a diferença, por actos ou palavras, porque é da esfera pessoal que a mudança pode e deve surgir. As “ideias não podem ser apagadas” e estão condenadas a ser propagadas, mesmo quando aparentemente derrotadas ou esquecidas. Solnit sabe-o e pugna para que também nós não o esqueçamos.

A leitura deste conjunto de ensaios pode ser um começo, mas nunca um fim. Aponta caminhos, cita profusamente estudos actuais e factos históricos e convoca-nos a ver a verdade negra que, infelizmente, ainda nos cerca e assombra. A aceitação e reconhecimento desta verdade é condição essencial para uma discussão sem preconceitos das suas causas e efeitos, possibilitando assim uma autêntica e irreversível mudança de mentalidades.

As coisas que os homens me explicamQuetzalRebecca Solnit

Paulo Ribeiro da Silva

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