A leitura de uma obra que veio a dar o mote para um dos filmes de culto de uma geração pode revelar-se uma tarefa ingrata caso, por força das circunstâncias, o leitor tenha visto o filme antes de se debruçar sobre o autor que inspirou o enredo. Há sempre o risco da desilusão, a probabilidade de, na página seguinte, saber já o que trarão as próximas linhas. Em “Clube de Combate” (Marcador, 2016), felizmente, nada disso acontece. Posto ao contrário: o livro é fiel à obra cinéfila? Não literalmente, mas o fio condutor é aquele adoptado pelo enredo cinematográfico.
O narrador surge como uma personagem não identificada pelo autor, partilhando a visibilidade durante toda a história com Tyler Durden. Trata-se de um individuo low-profile, que convive com um emprego (faz análises a acidentes numa seguradora) que não o satisfaz, que possui uma auto-estima deplorável e tem de lidar com uma insónia que o consome. Até se deparar com Durden o narrador não tem quaisquer amigos, e a sua maior ligação de afecto é a “cada pauzinho de madeira daquela peça de mobiliário” que, para grande azar do próprio, vai pelos ares logo no início da trama.
Nisto entra em cena Marla Singer. O narrador conhece-a num dos grupos de apoio de pessoas que padecem de patologias que as impedem de ter uma “vida normal”. Marla considera os grupos de apoio um divertimento mais económico que uma ida ao cinema, com o bónus do café ser de borla. Marla é, sobretudo, uma hipocondríaca, que quer fazer parte da vida de Tyler Durden porque a sua vida solitária é uma espera pela morte que nunca mais vem. O narrador, esse, não suporta Marla ou a sua insónia contínua.
Surge então o verdadeiro “Clube de combate”. Após sair de um bar, o narrador e Tyler pegam-se, por iniciativa do segundo, à pancada. Pouco depois, deparamo-nos com encontros semanais na cave de um bar. A primeira regra é clara: “Não se pode falar do Clube de combate”. A segunda regra? É apenas igual à primeira. Trata-se de um clube lotado de homens bem-sucedidos e cidadãos banais que, pelo menos uma vez por semana, pretendem ganhar umas nódoas negras, perder alguns dentes mas, sobretudo, esquecerem-se de si mesmos.
À medida que o Clube ganha membros, a intimidade entre Singer e Durden não pára de crescer. Nunca estão na mesma divisão da casa – um imóvel abandonado que se esqueceram de demolir e que não tem ninguém à volta num raio de dois quilómetros –, a não ser que estejam a trocar fluidos. Quando não está a divertir-se com Marla Singer, Tyler Durden é projeccionista num cinema ou então produz sabão artesanal tendo como matéria-prima a sebosa gordura humana (as pontas dos seus dedos podem parecer-lhe peganhentas quando se cruzar com estas páginas). Ou, quando tem tempo livre, urina para dentro da sopa das pessoas mais ricas da alta sociedade americana nos seus eventos sociais. Não é apenas Marla que se apega a Durden, também o narrador, a certa altura, apelida o parceiro de “irmão gémeo”. Tyler era, afinal, a pessoa de quem o narrador precisava na sua vida para se sentir amado.
Paralelamente, a fábula anti-sistema de Chuck Palahniuk cria o Projecto Caos, uma entidade de jovens revoltosos, anarcas e com fetiches por demolições. Este aglomerado de jovens borbulhentos e movidos a testosterona pretende vingar-se, através do choque e do pavor, de uma sociedade que não lhes deu aquilo que outrora lhes prometeu. “Clube de Combate” é, assim, o espelho do falhanço do sonho americano.
Muitas vezes e em abordagens do próprio narrador, Palahniuk apela a uma crítica ao consumismo e ao apego materialista. Vinte anos depois da primeira edição, “Clube de Combate” continua actual, como uma obra de revolta contra o vazio social, a ausência de mobilidade e ascensão no mundo laboral, a organização do mundo corporativo: é uma dissertação sobre a evidente frustração da classe média ocidental, sobre a transformação de seres racionais em marionetas. Mora aqui uma obra de culto, não só pela posterior conversão ao cinema pelo mestre David Fincher como, também, pelo seu aspecto corrosivo, cru, violento e virulento.
Sem Comentários