“Alberto Caeiro está no centro da ficção pessoana.” A frase é de Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari na apresentação a “Obra Completa de Alberto Caeiro” (Tinta da China, 2016), volume que reúne, pela primeira vez e num único livro, os escritos de um dos heterónimos saídos da imaginação de um génio chamado Fernando Pessoa.
Alberto Caeiro que, diga-se, teve uma vida muito curta: nasceu a 16 de Abril de 1889 e morreu em 1915, vítima da tuberculose. A sua origem é, no mínimo curiosa, pois conta-se que terá nascido de uma casualidade traquina: “Lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro: de inventar um poeta bucolico, de especie complicada“, conta o próprio Pessoa. Talvez por isso a sua morte esteja ligada ao próprio suicídio de Sá-Carneiro: ainda que a morte de Caeiro tenha ficado registada no ano de 1915, as datas de nascimento e morte apenas foram fixadas por Pessoa em 1916.
Mas quem é afinal este poeta que, no dia 8 de Março de 1914 – que ficou conhecido como o “dia triumphal” -, escreveu mais de metade dos 49 poemas de O Guardador de Rebanhos, tendo-se tornado, ele próprio, o mestre de outros heterónimos de Pessoa como Ricardo Reis ou Álvaro de Campos? Regressemos ao texto de apresentação do heterónimo que, tanto moral como intelectualmente, se veio a revelar uma “construção editorial póstuma“, sempre ligada ao inacabável acto da construção:
“Nascido em Liboa, Caeiro seria um pastor que <viveu quasi toda a sua vida no campo> e que <não teve profissão nem educação quasi alguma> (Pessoa, 2013, p. 648). Um poeta <quasi ignorante das lettras> que, na sua própria obra, se gaba de não ler certos autores, como Virgílio, ou, simplesmente, de passar o tempo <sem ler nada, nem pensar em nada>. Um espontâneo, um ingénuo, um simples. Em poucas palavras, Caeiro é um mito.”
Navegamos, pois, no domínio do quase fantástico, entre a genialidade e o embuste, uma vez que, apesar de Pessoa o considerar o seu heterónimo mais verdadeiro e purista, não deixa de estar colocado entre a naturalidade e a artificialidade, a verdade e a mentira, entre a iliteracia e as letras todas do alfabeto, constantemente revisto e editado pelo próprio Pessoa muitos anos após ter decidido declarar o óbito de uma das suas criações.
Nesta grande edição da Tinta da China, é servido ao leitor o mundo por inteiro de um poeta que foi beber a Shakespeare, a Wilde mas sobretudo a Whitman, influências que, contudo, acabaram diluídas no vendaval criativo pessoano. Para além de “O Guardador de Rebanhos”, onde além do texto é servido ao leitor o fac-simile do caderno original de Pessoa constituído por 40 folhas de papel almaço – e que acabou por ser um verdadeiro work in progress -, há todo um universo a explorar: O Pastor Amoroso; os Poemas Inconjunctos e uma série de respostas dadas a entrevistas; o plano de apresentação europeia de Caeiro intitulado “Um grande poeta materialista”; o artigo para a revista A Águia; textos escritos para algumas revistas inglesas; trechos do prefácio em inglês para Complete Poems of Alberto Caeiro; comentários a seis poemas de O Guardador de Rebanhos; textos de António Mora, Ricardo Reis e I.I. Crosse, bem como algumas “Notas para a recordação do meu mestre Caeiro”, de Álvaro de Campos.
À semelhança de anteriores livros dedicados à obra de Fernando Pessoa pela editora – na Colecção Pessoa -, mora aqui uma grande edição onde, para lá dos conteúdos e do esmerado plano de edição, se pode contar com a habitual capa dura, a ilustração a preto e branco com toques de surrealismo de Vera Tavares e a paginação certeira de Pedro Serpa. A eternidade de Fernando Pessoa continua a escrever-se, de forma permanente, a Tinta da China.
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