Patrícia Müller cativa-nos desde logo pelo título sugestivo. “Uma Senhora Nunca” (Quetzal, 2016) parece inacabado, como que lançando uma pergunta ao leitor ou, até, pedindo-lhe uma resposta, oferecendo depois nas suas páginas a confirmação – ou não – do que podemos pensar que uma
senhora nunca deve fazer, pensar, sentir…
“Nunca suportou a ideia de que um comportamento seu pudesse ser alvo de crítica. A santidade é uma prática e não um conceito longínquo. (…) A religião é a psicanálise de uma senhora.”
Neste primeiro contacto com a escrita de Patrícia Müller fica desde cedo a certeza de uma narrativa espirituosa, pautada de um humor peculiar, elevada crítica social – que, mesmo de época, se estende até aos nossos dias – e de um enredo cativante e envolvente.
“Maria Laura sentiu-se encurralada (…) imagens do fatídico dia perseguiam-na. Nunca tinha sido feliz, mas durante muito tempo foi essencialmente triste.”
De forma sôfrega vamos devorando esta narrativa que não nos oferece respostas, antes pelo contrário, assalta-nos com novas questões que temos medo de não ver respondidas devido à demência que vai atacando Maria Laura.
“”A mente é o mais formidável órgão que Deus fez”, Maria Laura repete isso nas intermitências da lucidez (…)”
“Maria Laura tem uma carroceira dentro de si e ela não sabia. E não sabe onde é que a carroceira aprendeu a bíblia do vernáculo. (…) Lucinda fica petrificada de horror diante deste cenário (…) sem a
Maria Laura introvertida, moralista e tristonha, alguém tem de gerir a espiritualidade da família.”
É essa família que vamos conhecendo através de capítulos que fervilham de detalhes e novos tentáculos que envolvem e acrescentam emoções, acontecimentos, tragédias, decisões, amores e obrigações
que foram determinando a vida de Glória e Policarpo, os pais de Maria Laura; a vida com Carlos e o enteado e até a sua filha Lucinda, de todos nos vamos tornando íntimos, aceitando a duplicidade e os segredos que os saltos temporais revelam.
“O barroco de Maria Laura também vem da avó Augusta. Nunca lhe deu um abraço, mas ensinou-a a espremer o sumo trágico de qualquer acontecimento.”
“É a tarefa mais árdua, mesmo para Maria Laura: fazer da duplicidade escancarada uma ideologia que converta qualquer alma à religião que ela propagandeia, a apologia do segredo.”
Este “Uma Senhora Nunca” pode muito bem elogiar e propagandear os segredos e os pecados familiares – e até uma certa mesquinhez que daí advenha -, mas em altura alguma se perde no melodrama familiar, pois Maria Laura é uma personagem fortíssima, uma senhora que tenta superar todas as neuroses próprias da vida que escolheu, empurrada pela época, mas também por Policarpo e Glória.
“O coração de Policarpo descobriu-se totalitário com a mulher e concretizou-se ditador com a filha.”
Maria Laura é uma senhora, mas foi também filha, esposa, neta, avó. E foi mais ainda quando, sem deixar de ser uma senhora, foi simplesmente mulher.
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