Mark Lanegan, velho guerreiro do grunge, subiu ao palco do Cinema São Jorge, em Lisboa, na passada segunda feira. O espectáculo anunciava-se como intimista, centrado nas músicas mais tranquilas e atmosféricas do seu catálogo.
Lanegan não anda a promover nenhum álbum. A digressão “An Evening With Mark Lanegan” funciona antes como um inventário da sua já longa carreira, com passagem por discos bem antigos como “I’ll Take Care Of You”, de 1999, ou “Bubblegum”, de 2004.
O sobrevivente do grunge trabalhou com meio mundo, de Kurt Cobain a P.J. Harvey, dos Queens of The Stone Age aos Soulsavers, de Isobel Campbell aos Massive Attack – podíamos estar nisto o dia todo. O prolífico músico conta ainda com nove álbuns a solo, o último dos quais, “Phantom Radio” de 2014, granjeou o aplauso da crítica. Este facto não melhorou a disposição de Mark: a sua música continua a residir no percurso minado de fendas que foi a sua vida.
Pouco passava das 21h00 quando começou o primeiro espectáculo. Lyenn, o jovem baixista da banda de Lanegan, apresentou-se em palco só com a guitarra e a voz. Canta temas delicados e sombrios, sobre uma rede de texturas dedilhadas. A sua prestação vocal está algures entre a doçura de Thom Yorke e a intensidade de Jeff Buckley. No entanto, o público não parecia arrebatado. Só no final da actuação é que o músico conseguiu arrancar a plateia do coma, com uma apaixonada canção – a voz, torturada, transformada gradualmente num grito intenso.
Seguiu-se um dos guitarristas de Lanegan, Duke Garwood – juntos fizeram o disco “Black Pudding”, em 2013. Depois de alguma atrapalhação inicial, Garwood iniciou o seu set, também armado apenas com a sua guitarra e voz suave.
Apresentou alguma músicas de “Heavy Love”, álbum a solo de 2014. Enquadradas na temática da noite, as suas músicas de raiz blues não destoaram. Mas esteve longe de encantar a plateia, que ia aplaudindo educadamente cada tema. Algumas pessoas aproveitavam a actuação para passearem no Instagram ou no Facebook, enquanto Garwood pintava algumas paisagens do deserto. As suas melodias fluídas e aveludadas resultaram numa actuação sem sobressaltos de maior.
Ainda não eram 22h30 quando a banda completa entrou em palco, com Lanegan a dirigir-se ao microfone com passadas um pouco combalidas. Assim que a voz de barítono ecoou pela primeira vez, profunda como um poço, a temperatura da sala mudou, e o público estava conquistado.
A digressão não conta com nenhum baterista. Havia apenas quatro músicos em palco: o baixista Lyenn, os dois guitarristas Garwood e Jeff Fielder, e o próprio Lanegan, ostentando uma bigodaça digna de vilão de um qualquer western spaghetti.
Adequadamente sinistros, todos vestidos de preto, os músicos abriram com “One Way Street”, grande balada do álbum “Field Songs”, de 2001, seguida de “Creeping Coastline Of Lights” e “Mirrored”. O carisma de Lanegan é evidente – ao longo das provações por que passou, a sua voz adquiriu uma fundura e intensidade sem paralelo na música contemporânea. Provavelmente não poderia soar assim se Mark tivesse levado uma vida calma e sóbria.
“Graveddiger’s Song”, tema de “Blues Funeral”, de 2011, encheu a sala de distorção e energia. Como uma barca de chumbo, é uma música tensa e vibrante, que foi muito aplaudida.
Viajando no repertório de Lanegan, tivemos direito a blues desalentados como “I’ll take Care of You” e baladas fabulosas como “Judgement Time” e “One Hundred Years”. A sua voz é áspera como uma lixa, como se viesse de muito longe e, ainda assim, de má vontade. Há algo de apocalíptico, de bíblico, na litania sombria cantada por Mark Lanegan, e passou pelo São Jorge esse sopro antigo. A sua aura de rocker-á-beira-do-desastre empresta uma beleza gótica e um negrume a temas à partida mais ligeiros: foi o caso das versões do clássico “Mack The Knife” e de “You Only Live Twice”, de Nancy Sinatra.
A belíssima cover dos Napalm Beach, “Holy Ground”, foi tocada só com o baixo de Lyenn e a guitarra acústica de Jeff Fielder. Duke Garwood assistia, imóvel, na sombra. Outro ponto alto da noite foi “Torn Red Heart”, de “Phantom Radio”, disco em nome próprio de 2014. A banda convocou a cena shoegaze, principalmente os Jesus and Mary Chain, com uma pitada de “Atmosphere”, dos Joy Division, nas frases do baixo de Lyenn.
A versão despida de “Where The Twain Shall Meet”, música dos velhinhos Screaming Trees, pareceu estranhamente domada em relação ao original, que é uma explosão de energia eléctrica.
Após “On Jesus Program”, mais um intenso momento de blues, a banda sacudiu a poeira do deserto e saiu do palco, mas depressa regressou para o encore. Lanegan fez-se à estrada americana com “Driver”, do álbum “Black Pudding”, com a guitarra de Duke Garwood a ganhar mais destaque.
A genial balada da fronteira “I Am The Wolf”, do último “Phantom Radio”, mostrou todo o colorido da voz de Lanegan. O concerto chega ao fim com mais uma versão dos Screaming Trees, chamada “Halo Of Ashes”. O guitarrista Jeff Fielder esteve muito bem em todo o espectáculo, e este tema viu-o arrancar uma performance fabulosa da guitarra, que até Lanegan aplaudiu. A noite terminava em alta, e a sala a abarrotar aplaudiu longamente as cintilações de sombra de Mark Lanegan, naquele que foi o último concerto desta digressão.
Setlist:
One Way Street
Creeping Coastline Of Lights
Mirrored
The Gravedigger’s Song
Holy Ground
I’ll Take Care Of You
Judgement Time
Where The Twain Shall Meet
Torn Red Heart
Can’t Catch The Train
One Hundred Days
Deepest Shade
Mack The Knife
You Only Live Twice
On Jesus Program
Encore:
Driver
Mescalito
I Am The Wolf
Bombed
Halo Of Ashes
Fotos gentilmente cedidas pela Everything is New.
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