Um escritor é sempre uma coisa inacabada mas, ainda assim, o primeiro romance da irlandesa Eimear McBride deixa a promessa de novos patamares na evolução da literatura. “Uma Rapariga é Uma Coisa Inacabada” (Elsinore, 2016) entrou de rompante no universo literário, isto depois de a autora ter feito uma travessia no deserto de nove anos em que as portas das grandes editoras se fecharam. Quando uma pequena editora decidiu chegar-se à frente, depressa “A Girl is a Half-formed Thing” – título original – se tornou num fenómeno de popularidade, conquistando importantes prémios: Baileys Women’s Prize for Fiction, Goldsmiths Prize, Kerry Group Irish Novel of the Year Award, Desmond Elliott Prize e Geoffrey Faber Memorial Prize.
Eimear Mc Bride coloca a fasquia bem alta com este romance de estreia, e as perguntas a colocar poderiam ser muitas. Como esta: Porque é que a jovem escritora é já comparada aos clássicos irlandeses James Joyce e Samuel Beckett? Pois bem, a linguagem é uma coisa inacabada e o sucesso de “Uma Rapariga é Uma Coisa Inacabada” começa exactamente por aí, pela linguagem. Faz lembrar um fluxo incontrolável de pensamentos, uma segunda consciência que parece querer tomar conta de tudo. Uma verborreia mais rápida do que o raciocínio ou a lógica. É a linguagem do coração que Eimear McBride captura, dando-nos a conhecer a essência do ser da protagonista sem nome que luta contra tudo e contra todos, principalmente contra a educação cristã irlandesa que lhe corre nas veias e lhe corrói a consciência.
O fio condutor da narrativa decorre das consequências da doença grave do irmão da protagonista na família, mas não devemos reduzir o romance ao eixo gravitacional da família nuclear da rapariga sem nome. É, também, de ausências que se fazem notar, que vive a história: ausência de pai, ausência de amor-próprio, ausência de carinho (substituído pela moral vigente e pelas constantes reprimendas da mãe que exige perfeição Cristã) que se traduz num percurso sexual feroz. Mas, também, de várias necessidades: a de se afirmar, de se revoltar contra o destino, de esbracejar que nasce o amor doentio pelo tio e uma vida sexual que mais parece uma vingança sofrida na carne; a de esconder a verdade, as sequelas que o tumor cerebral deixou na vida do irmão, na vida de todos; a de esconder a aproximação da morte do irmão, inevitável, inexorável, não a aceitar e, mais uma vez, sofrer em silêncio as dores do pequeno núcleo de filha-filho e mãe.
O fluxo selvagem de palavras reflecte a confusão e a revolta da “rapariga sem nome”, mas não assistimos a um exercício inócuo de desconstrução da sintaxe pelo sentido estético. É precisamente aqui que Eimear Mc Bride ganha a aposta: tudo o que é dito soa a verdadeiro, como se a voz da protagonista existisse. A personagem é real porque fala no tom próprio da sua idade e do seu extracto social.
Os palavrões, os pensamentos que se atropelam, as ideias incompletas, o experimentalismo das amizades, os rancores e as crenças postos em causa pelo ritmo galopante da doença do irmão. Tudo isto numa linguagem do quotidiano que pinta um quadro impressionista da sociedade contemporânea irlandesa, vivida na primeira pessoa por aquela cujo nome desconhecemos mas cujas dores facilmente reconhecemos.
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