Há para todos os gostos, essas coisas das quais não se falam. O que as caracteriza é não serem fruto dos tempos. Convivem entre nós, num subsolo de conceitos tidos como imorais, ou simplesmente duros demais para abordarmos com franqueza. Ora preponderante nas narrativas que analisaremos, ora subtil, de rédea solta, o tabu é o mote desta discussão, no rescaldo do 13º IndieLisboa, a partir da lente de cineastas sem um extenso currículo mas que já ultrapassaram o porte médio – em alguns casos são grandes, muito grandes.
Se houvesse uma espécie de hierarquia de tabus, quiçá o incesto não fosse dos mais frágeis e mais propícios à revolta da populaça. E se o amor entre irmãos quebrasse a barreira das convenções morais da sociedade onde se insere, a romena? E se fosse genuíno, esse amor entre um homem e uma mulher, mas com a particularidade de serem familiares directos? Partindo desta premissa, há outro tabu que paira sobre “Ilegitim” (foto acima), de Adrian Sitaru, daqueles que persistem à margem, por mais leis que o promulguem: o pai desses irmãos apaixonados fora informador no regime de Ceaușescu, sendo que o alvo da acusação (ou prevenção, como riposta o patriarca Victor Anghelescu) eram as mulheres que exerciam o seu direito (não reconhecido) de abortar. Quando os filhos o confrontam, parece não sentir remorsos dos seus feitos passados. Sasha, entre os irmãos, é justamente quem pondera esse direito de escolha, assim que descobre que está grávida do irmão gémeo, Romeo. Com temas particularmente sensíveis entre nós, é incansável ao longo da sua duração: muito texto é batido neste filme de Sitaru, certamente feito com tostões. O lado alegórico e mágico (sem estar nos meandros do fantástico) que caracterizaram “Domestic” e a curta-metragem “Art”, ambos filmes que passaram por cá em 2014, na Festa do Cinema Romeno, é posta de lado para dar lugar a um realismo social cru, com movimentos handheld ao jeito da despreocupação documental mais convencional, que só quer apanhar o momento certo. É, no fundo, Sitaru a tornar-se mais um entre os seus comparsas muito premiados do cinema made in Roménia, que chegaram à glória com predicados semelhantes. O que não é necessariamente mau, mas também não é testemunho da genialidade que parecia destacar a sua obra.
Mais próximo da genialidade, seja lá o que isso for, está o cineasta brasileiro Gabriel Mascaro e o seu “Boi Neon”, filme que havia passado por Veneza e Berlim. Tal como era prometido, não deve ter deixado o Grande Auditório da Culturgest indiferente. O português nordestino é tão peculiar quanto o estilo de vida que o filme retrata, o de um grupo itinerante de vaqueiros. Seguimos Iremar (interpretado por uma cara conhecida das telenovelas, Juliano Cazarré) e os seus colegas, em jeito familiar, pela estrada. O desejo que Iremar nunca esconde é o de ser estilista de alta costura, pese o trabalho árduo (transpira testosterona) que é cuidar de bois que entretêm o público de rodeos muito característicos do nordeste brasileiro, as vaquejadas. Temos, além desta premissa, um punhado de outras coisas que provavelmente nunca tínhamos visto filmado, sem questionar os hábitos de Internet de cada um. Distintos entre si, temos o cómico – mas quiçá doloroso – depilar das virilhas femininas com uma banda de cera, puxada à queima-roupa; temos o handjob a um cavalo puro sangue, cujo intuito de usar a litrosa de sémen em éguas não classifica o acto como zoofilia; temos – e aqui se trata do mais importante – uma belíssima reflexão, sob a forma de cena de sexo (ao que tudo indica não simulada), entre Iremar e Geise, uma grávida. Se excluirmos a natureza cruel (que garante a produção ser documental) da vida dos animais que participam nas vaquejadas, em prol de um realismo que, quer queira, quer não, induz ao repensar das nossas formas primitivas de entretenimento, “Boi Neon” é uma exposição enobrecida de momentos íntimos e de identidades de género alheias à norma. Questionem-se sobre o que há de estranho num vaqueiro, dado a sexo heterossexual, gostar de costurar vestidos espampanantes, e questionem-se sobre o porquê de ser desconfortável admitir que as grávidas também gostam de fazer amor, mesmo que implique que o parceiro seja outra pessoa que não o pai da futura criança.
Fiquemo-nos pelo Brasil. Terra fértil para muitas coisas, entre elas, bom cinema. E que filmão é esse, de Anita Rocha da Silveira, “Mate-me Por Favor”. Partindo da desconstrução do sub-género slasher, nunca chega bem a sê-lo e, se tem como cortina os homicídios hediondos de adolescentes, é muito mais que isso. Um coming of age pela perspectiva feminina, parte da construção de identidade e consequente transformação de Bia (fiquem de olho em Valentina Herszage) e o seu grupo de amigas. Rocha da Silveira não deixa o erotismo de parte pela idade dos intérpretes e, embora nunca chegue a ser explícito como um Larry Clark, é mais eficaz sendo subtil – e capturando a essência precoce do desejo, cobiça e curiosidade. Se despirmos a estética visual de “Mate-me Por Favor”, temos um híbrido entre uma Sofia Coppola, de olhar atento sobre uma geração (muito actual e irritante, a dos smartphones, das redes sociais, do instantâneo e viral) e um Nicolas Winding Refn menos sádico e mais anos 80 synthpop revival, num cenário Barra da Tijuca de classe média alta, fotografada de modo a enaltecer um Rio de Janeiro tantas vezes exclusivo à pobreza das favelas. Longe de ser uma história do Brasil dos iletrados – um contraste completo com o retrato de “Boi Neon” – cumpre o seu dever satírico: estamos perante o país que casa como ninguém a moral religiosa cristã e a folia hedonista.
Um pouco mais acima no mapa, continuamos na América do Sul, num meio termo único munido de poderio visual despido, reduzido à essência. Caracas, Venezuela. O filme é “Desde Allá”, o realizador debutante nas longas metragens é Lorenzo Vigas e a ideia do guião parte de Guillermo Arriaga, o senhor de “Amor Cão” e “21 Gramas”, outrora um orgão vital de Iñárritu. A moral volta a agir em cumplicidade de juiz, para o espectador sentenciar os desvarios sexuais que Armando, um homem abastado de meia idade (Alfredo Castro, o senhor “Tony Manero”), nutre por rapazes imberbes, prestes a entrar na idade adulta. Armando envolver-se-á com Elder (Luis Silva), de 17 anos, delinquente amoral que, aos poucos, redescobrirá a sua sexualidade. Com uma das realizações mais sumptuosas que gracejaram o Indie, apresenta um jogo de focagem e desfocagem, mantendo os pormenores em proximidade ou reconhecíveis à distância, uns mais óbvios que outros, e escolhendo enquadramentos que tanto têm de pouco ortodoxo, como de belo, devendo imenso à linguagem fotográfica elementar. Quer a Caracas dos ricos, como também a dos pobres, é um colosso de charme urbano. Em termos de estrutura narrativa é certinho e operário, com as lições de causa-efeito estudadas, onde tudo encaixa tão bem que é quase criminoso chamá-lo previsível. Estão na presença do filme que venceu o Leão de Ouro em Veneza.
Em jeito de epílogo, sem noção de se alguma vez saímos do primeiro acto, fica o breve apontamento sobre o peso pesado deste IndieLisboa. O tema é doloroso: uma luta contra um cancro terminal, das mais duras alguma vez filmadas. Tão dura que é capaz de tornar “James White” daqueles filmes que só se vê uma vez na vida. Talvez conheçamos o drama na pele, e só precisamos de ser relembrados uma vez. Josh Mond, enquanto realizador e guionista, tem os tomates para dar o nome ao filme igual ao do protagonista: este é o James White, esta é a vida dele. Tens nem que seja um bocadinho de James White em ti e o que lhe vai acontecer podia acontecer-te. Temperamental, dado a confusões e a um ritmo de vida possante, James (o soberbo Christopher Abbott) está na pior fase da sua jovem vida. O pai ausente morreu e a mãe está a morrer de cancro (Cynthia Nixon a provar que é mais que um cromo de “Sex and the City”). Em negação, James mantém viva a esperança e, aos poucos, percebe que a prioridade são os últimos meses de vida da mãe. A sua luta é a de tantos outros: um mundo hiper-realista feito de dor, onde o único alívio é o esquecimento e onde uma câmara se intromete, encurralando os personagens em planos apertados. Não será descabido afirmar que “James White” é dos melhores dramas norte-americanos dos últimos anos. Num mundo justo, levava tudo o que houvesse para levar na award season americana.
Um ano de boa colheita, portanto, em que o IndieLisboa continua a sua missão elementar: formação de público e uma aposta forte em primeiras obras, bem como nos cineastas que são quase família, laços criados em edições anteriores. Deixa claro, também, que o cinema independente não se pauta apenas pela falta de dinheiro e que, mesmo sendo esse o caso, tal jamais se traduziu em falta de criatividade. Com isto em mente, não pretende ser outra coisa que não isto: o maior festival de cinema em Portugal.
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