Se precisa desesperadamente de acreditar no amor, então chegou ao livro certo. Em “Carta à mulher do meu Futuro” (Alfaguara, 2016), Petér Gardós assume-se como o narrador da história de amor protagonizada pelos seus pais, Lili e Miklós. Neste seu primeiro romance, o cineasta hungáro imprime uma dinâmica que nos faz querer avançar rapidamente, de forma a descobrirmos o milagre que salva a vida a Miklós Gardós.
No início do livro, travamos conhecimento com o jovem húngaro de 25 anos, que viaja de barco até um campo de refugiados na Suécia depois de sobreviver a um campo de concentração. Percebemos, pela descrição da viagem, que Miklós se encontra às portas da morte, e o prognóstico do médico do campo, o Dr. Lindholm, não deixa dúvidas: o rapaz sobreviveu à segunda-guerra mundial e ao campo de concentração mas não tem como escapar da tuberculose que lhe mina os pulmões. Sabemos porém, desde o início , que o médico sueco está errado, porque o narrador assume, desde as primeiras páginas, ser filho de Miklós.
Está dado o mote para uma leitura veloz. Afinal, quem não gostaria de escapar à morte? Qual terá sido a fórmula mágica do jovem Húngaro, que chegou à Suécia desdentado, tuberculoso e com vinte e nove quilos?
Petér Gardós socorre-se de uma escrita simples mas tão eficaz como uma câmera de filmar. Cada episódio, narrado com imparcialidade, parece uma cena, um “take” ao qual se acrescenta o ingrediente secreto: “excertos das cartas de amor” que os protagonistas, Miklós e Lili, trocaram entre Setembro de 1945 e Fevereiro de 1946.
Ao longo dos dezassete capítulos em que o autor descreve os seis meses que os pais passaram na Suécia, em campos de refugiados, percebemos que não existiu um momento exato para o “milagre” da recuperação de Miklós.
Terá sido o objectivo delirante do protagonista, o de escrever cartas às 117 mulheres da sua terra que viviam em campos de refugiados na Suécia, que o manteve afastado da morte? Terá sido o desdém metódico, a recusa obstinada em ouvir o prognóstico repetido vezes sem conta pelas imagens neutras do Raio X? Terão sido as respostas de Lili? O planeamento do primeiro encontro entre os dois? O sonho quase impossível (alimentado pela troca de correspondência e pelas lembranças do primeiro encontro, do primeiro beijo) de se casarem?
Em “Carta à Mulher do meu Futuro” revemos o passado pelo olhar de Peter Gardós. É como se, com ele, descobríssemos as vivências dos pais naqueles seis meses de exílio na Suécia, e nos nos maravilhássemos com a leitura de dezenas de cartas de amor que alimentaram a esperança de Miklós.
A profundidade das personagens, o seu carácter, as dúvidas, os medos e a complexa teia de relações criada nos campos de refugiados (há amizades improváveis, como a de Miklós com o doutor Lindholm, ódios recalcados como o de Judite Gould por Lili) é nos dada a conhecer pelo olhar do cineasta Húngaro, que se maravilhou com o romantismo que envolveu o início de vida dos seus pais.
Paralelamente e através de relatos de alguns episódios – quer no Campo de Refugiados das mulheres, quer no dos homens -, apercebemo-nos da capacidade de adaptação do ser humano.
No posfácio, o autor deixa de lado a imparcialidade de quem descreve o que imagina – através do que lê nos dois maços de cartas que a mãe lhe deu depois da morte do pai em 1998 -, e desvenda um pouco aquilo que foi a vida da família depois do regresso à Hungria em 1946.
Se Petér Gardós acumulará, a partir de agora a carreira de romancista com a de cineasta, é algo que não podemos prever, mas este seu primeiro romance – adaptado ao cinema com o título “Fever at Dawn” – será reconhecido, daqui por diante, como uma celebração ao amor e à esperança. E isso já é uma certeza.
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