Há histórias de amor, nascidas em ambientes fatais, que merecem ser dadas a conhecer ao mundo. Mesmo na toxicidade do Holocausto, registado nos últimos anos com mais incidência em dezenas de romances, foi possível encontrar uma das mais belas histórias de amor. “Carta à mulher do meu futuro” (Alfaguara, 2016) é a primeira aventura do realizador e encenador Péter Gardos na literatura. Tal como o escritor húngaro confessou, nunca faltaram histórias sobre as suas aventuras e sobre a sua família para dar origem a grandes produções cinematográficas, mas a correspondência entre os seus pais deu origem a um dos melhores romances lançado para as livrarias portuguesas.
Até à morte do pai, a experiência familiar do Holocausto era um assunto intocado. Em entrevista ao Observador, Gardos confessou que foi na infância – e com alguma violência – que tomou conhecimento da sua origem judaica, ao receber um bofetada do progenitor como castigo por tornar um jovem rapaz como alvo de chacota por “pertencer àquela raça tão odiada”. Sem nunca ter conversado sobre a experiência no Holocausto, cresceu sem saber como se conheceram os progenitores, imaginando que o encontro tinha acontecido “num hospital onde os dois doentes se encontram no corredor e se apaixonam um pelo outro”. Só três anos após a morte do pai tomou conhecimento das cartas trocadas. O caminho percorrido em “Carta à mulher do meu futuro” foi em direcção ao pai, um homem com “um sentido e humor fantástico, uma grande ironia” que não conheceu realmente em vida.
O primeiro romance de Gárdos conta a história real de dois sobreviventes à Segunda Guerra Mundial. Ao sobreviver ao campo de concentração de Bergen-Belsen, o jovem húngaro Miklós é levado para um campo de concentração na Suécia com uma sentença fatal: ser portador de tuberculose faz com que lhe restem unicamente seis meses de vida pela frente. Lili Reich, a mãe do autor, entra em cena a partir do momento em que Miklós decide fazer frente ao seu destino: ao tomar conhecimento de 117 mulheres da sua terra a viver em campos de refugiados, decidiu enviar cartas a todas para encontrar o amor da sua vida. Das poucas cartas de resposta que obteve, a única que lhe despertou a atenção foi a da jovem Lili. De uma troca de correspondência intensa e de alguns encontros, nasce uma incrível história de amor contada por Peter Gárdos. Uma correspondência inicialmente tímida, como “uma espécie de dança inicial”, dá origem a cartas mais intensas e apaixonantes.
É pelas letras e pelos livros que os acontecimentos permanecem na memória dos seres humanos. “Carta à mulher do meu futuro” é mais do que mais uma obra literária baseada nos horrores do Holocausto – vai para além do terror perpetuado em muitas das histórias contadas sobre a Segunda Guerra. É uma bela história de amor, uma luz de esperança. Um sentimento sentido tal como em “Toda A Luz Que Não Podemos Ver”, de Anthony Doerr, vencedor do Pulitzer em 2014. Poderá dizer-se que a semente de esperança na história de Marie-Laurie e Pfenning, entrelaçada unicamente nos últimos capítulos, é do mesmo calibre da história de Miklós e Lili. Mas, se no livro de Doerr a esperança reside na história de cada protagonista e no seu encontro, essa sensação é sentida nos planos dos protagonistas desta “Carta à mulher do meu futuro”.
A força de vontade de Miklós, em vencer e ir além da sentença proferida pela tuberculose que vive no seu corpo, é o impulsionador de toda a história. É a sua decisão, e todas as consequências que tal decisão implica, que faz com que o leitor queira conhecer o destino dos protagonistas. É como um guião detalhado, em que o leitor é colocado num filme bem descrito e detalhado sobre todas as emoções dos protagonistas. Quem esperar ler uma obra-prima dentro de todos os cânones literários, engana-se redondamente. Quem esperar ler uma das histórias mais viciantes e belas de sempre, então deve pegar nesta obra.
“Carta à mulher do meu futuro” é uma brilhante nota de vida de ambos os protagonistas, depois de tantos anos a circularem perto da morte. Mesmo após tantos anos de condições terríveis, que resultaram em milhões de judeus mortos, sobreviveu aqui uma grande história de amor. Um amor com os dias contados, onde saber esperar era uma verdadeira virtude. Numa última instância, houve a oportunidade de aliar duas artes sobre esta história: a literatura e o cinema. “Febre ao Amanhecer”, realizado pelo escritor e inspirado nesta obra, foi o filme escolhido para encerrar a 4ª edição da Mostra de Cinema Judaica 2016, que decorreu recentemente em Lisboa.
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