Em 2011, esperaram-nos os dias do fim. A contagem decrescente para o Apocalipse em “Suburra” é mais o confirmar que, passados dois mil anos, as disputas de poder na base da corrupção continuam fiéis a si mesmas e a magnânima Roma, que os ensaios históricos revestem de opulência, deu sempre espaço a antros de escumalha. “Suburra” evoca essa História Antiga, sendo uma zona de Roma repleta de tabernas e bordéis, ponto de encontro entre aristocratas e mercenários, onde decisões importantes se tomavam à margem da lei; submundo, esse, revisitado por Stefano Sollima numa interpretação livre e contemporânea, sem compromisso com quaisquer factos ou eventos reais, sobre o ambiente tenso por volta da queda do governo de Berlusconi – assim como na renúncia posterior de Bento XVI ao papado.
Baseado no romance homónimo de Giancarlo de Cataldo e Carlo Bonini (escritores que já haviam trabalhado com Sollima), “Suburra” começa por antecipar o tal Apocalipse a uma semana da queda do governo italiano. Nesse espaço de tempo tem lugar um pouco de tudo o que se possa imaginar sobre podridão sistémica. O deputado Malgradi (Pierfrancesco Favino), aluado pela sensualidade nocturna de Roma, decide embarcar num ménage à trois decadante (leia-se ébrio) num hotel de luxo. Crack, uma menor e uma prostituta de luxo cabeça de vento (Sabrina – Giulia Elettra Gorietti) são, portanto, ingredientes para uma noite acabar em grande. Forçados a despojar o corpo da menor, morta quiçá por overdose, Sabrina contacta um amigo cigano (Spadino – Giacomo Ferrara) acostumado a essas lides de resolver situações difíceis. O problema parece resolvido, mas calculamos de imediato que jogar um cadáver acorrentado para o fundo de uma lagoa não é a forma mais eficaz de se ver livre de um corpo.
Enquanto isso, na zona costeira de Ostia, Número 8 (Alessandro Borghi), um mafioso tatuado com negócios na noite hedonista, vê, naquela zona costeira de Roma, a futura Las Vegas da Europa. Sempre acompanhado pelo seu apêndice narcótico, a namorada Viola (Greta Scarano), anti-heroína improvável e possível fã de Stieg Larsson ou Rooney Mara, Número 8 é chamado a intervir a pedido indirecto de Malgradi, quando este começa a ser extorquido pela comunidade cigana – já que Spadino sabe mais do que devia. Começa uma batalha campal entre clãs, com raízes na esfera política que sobe (ou desce) até ao Vaticano. A somar aos ânimos, a trupe de Número 8 passa a ter como arqui-inimigo o patriarca cigano Manfredi (Adamo Dionisi) que, coincidência ou não, é irmão de Spadino. Manfredi chega à trama para arrasar com o auxílio ou vais a bem ou vais a mal do organizador de festas para a elite romana (e amigo de Sabrina) Sebastiano (Elio Germano). E não ficamos por aqui: querendo deixar claro que é o mais respeitado dos criminosos e com melhor agenda de contactos, temos Samurai (Claudio Amendola) a mediar o debate sangrento entre clãs: um senhor que até parece simpático, muito preocupado com a saúde da mãezinha, não fosse a sua frieza e escolha de palavras, sábias (no que diz respeito ao ilícito), indicar uma ameaça letal.
O cineasta italiano demarca-se dos seus conterrâneos que encantam as plateias de festivais, como o bem conhecido Paolo Sorrentino, apostando num thriller ao nível do cinema de género americano, um caso de exportação que se tem revelado lucrativo, tendo em conta que “Suburra”, numa inversão de papéis, convenceu os executivos da Netflix a apostar numa série de 10 episódios, a ser transmitida algures em 2017 e dando, portanto, continuidade ao enredo da longa-metragem.
A linguagem televisiva, moderna, que estações como a HBO ou a AMC vieram a dignificar – e até a suscitar o debate sobre se a longa-metragem, enquanto formato, não teria os dias contados, ou se perderia terreno na Era da Internet e o Stream -, está a dar sinais de saúde fora dos E.U.A. O ritmo, as cenas memoráveis recorrentes, bem como os soundbites, são detalhes que já nos tinham feito vidrar em Narcos, uma produção assegurada por vários países da América do Sul, também da Netflix. Dessa mesma estética, do vício compulsivo “binge-watching” com que se consomem temporadas inteiras – que encanta investidores –, vão surgindo thrillers com os ingredientes certos: violência, corrupção, sexo e drogas. É uma linguagem que Sollima conhece bem enquanto realizador da série Gomorrah e Romanzo Criminale, que conquistaram um amplo público fora do contexto social italiano. A aposta no formato “ensemble cast” e no exercício narrativo de efeito borboleta (o clássico acto inconsequente que dá mote a uma série de eventos entre personagens que ainda não sabem, mas estão todos ligados) parece, por enquanto, ganha.
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