Ao longo da história da literatura policial, não faltam investigadores, comissários ou detectives portadores de um pouco recomendado mau feito ou que, pelo menos, fujam aos moldes mais convencionais do bom trato. Philip Marlowe, porventura o maior detective que a literatura já conheceu, tinha um sentido de humor tão afinado que era normal apanhar umas sovas ou tapas valentes, tanto da polícia – que tratava com despeito – como das mulheres, a quem ia atirando piropos bem desenhados. Harry Hole, uma criação moderna do norueguês Jo Nesbo, tratava os AA por tu e, quanto a amizades – entre a polícia e a vida real -, contavam-se pelos dedos de uma só mão. No leitor, porém, acabava por se criar uma grande empatia com estes dois seres deslocados, uma espécie de anti-heróis que contornavam as regras para chegar a bom porto. Mas o que dizer de Sebastian Bergman, o profiler saído das mentes de Hjort & Rosenfeldt? Pois bem, a verdade é que é difícil ao leitor sentir grande admiração por este personagem, mesmo que carregue consigo um passado trágico: trata as mulheres como objectos, não respeita regras ou qualquer convenção social, é mal-educado e podíamos estar nisto o dia todo. Porém, apesar de todo este cenário pouco emocional, Sebastian Bergman é a figura central de uma série com o seu nome que tem, em “O Discípulo” (Suma de Letras, 2016), o segundo capítulo iniciado antes com “Segredos obscuros” (ler crítica aqui). O leitor, esse, aceita a vertigem e o mau feitio de bom grado e, terminada a leitura, apenas pode desejar que Bergman regresse rapidamente. Ele e o seu mau-feito, pois claro.
“Se a vítima fosse encontrada no quarto. Se a vítima estivesse amarrada. Se a garganta da vítima tivesse sido cortada.” São estes os três critérios que, passados através de directiva oficial, obrigam a que a Riksmord, uma espécie de super-polícia sueca, seja informada sempre que um corpo é descoberto. Ao observar a terceira vítima, Torkel – o chefe da Riksmord – dá por si a lembrar-se de um passado que julgava enterrado. Afinal, “já estivera junto a outras portas a olhar para outros quartos, já vira outras mulheres em camisa de noite, as mãos e os pés amarrados com meias de nylon, violadas e com as gargantas cortadas. Encontraram a primeira em 1995. A seguir houve mais três, até que conseguiram capturar o assassino no final da Primavera de 1996.”
Quinze anos depois Edward Hind continua bem preso numa prisão de segurança máxima, mas parece que há um imitador – um homem alto – a seguir-lhe todos os passos. O intrigante é que há pormenores na encenação dos crimes que apenas Torkel e a sua equipa de então conheciam pelo que, de alguma forma, Hinde terá de estar envolvido.
Para Sebastian Bergman a vida permenece difícil, ainda que um raio de esperança tenha penetrado na sua negra couraça. Depois de perder a filha e a mulher num Tsunami, acontecimento que o fez cair numa espiral de álcool, drogas, relacionamentos frívolos e amizades desfeitas, Bergman voltou a trabalhar num caso com a Riksmord – ler “Segredos Obscuros” -, tendo descoberto que das suas muitas aventuras sexuais de curta duração havia nascido uma filha. Filha que trabalhou com ele no caso, e que Bergman tenta agora de alguma forma recuperar, dividido entre contar-lhe a verdade ou manter o parentesco em segredo.
Com a Riksmord completamente às aranhas e a sombra de mais assassinatos a pairar sobre Estocolmo, a equipa aceita contrariada o regresso de Sebastian, o homem que havia conseguido apanhar Hinde, até perceberem que há uma estranha cola a unir as mulheres mortas: todas elas estão, de alguma forma, ligadas a Sebastian, e a filha deste poderá estar em perigo.
Na Riksmord as coisas mudaram, sobretudo por Billy ter agora uma namorada que o impele a desejar mais e a não se contentar com um papel secundário de serviçal ou nerd dos computadores. Quanto ao inútil Thomas Haraldsson, que quase deu cabo da missão a que a equipa se entregou no primeiro livro, foi promovido a director da prisão de Lovhaga, prisão onde está, curiosamente, Edward Hinde. Há também Sebastian Trolle, um ex-polícia a quem Sebastian Bergman recorre para tentar descobrir mais sobre a família da filha, tentando com isso abrir uma fissura que lhe permita entrar na vida desta. Ou ainda uma estranha mulher, que vai virar a vida de Sebastian do avesso ao mesmo tempo que lhe transmite uma paz inesperada.
Claramente superior ao primeiro livro da série, “O Discípulo” poderá ser lido sem o recurso ao anterior – por volta da página 50 há um bom enquadramento daquilo que ficou para trás -, ainda que seja aconselhável começar a viagem partindo de “Segredos obscuros”. “O Discípulo” é de leitura viciante e, para quem gosta de policiais vestidos à boa moda de um thriller, será difícil encontrar melhor que isto. O melhor de tudo é que a porta fica escancarada na última página, sendo de esperar que Bergman esteja rapidamente de volta, provavelmente depois de mais umas valentes descargas de mau feito.
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