Ainda restam incrédulos no que diz respeito ao desvanecer de um dos estúdios de animação mais amados do mundo. Diz-se que “Memórias de Marnie” (no original, “Omoide no Mānī”), nomeado para melhor animação na edição deste ano dos Oscars e integrante na competição de longas-metragens da Monstra – Festival de Animação de Lisboa, é o último filme com o selo Ghibli, após Isao Takahata ter assinado “O Conto da Princesa Kaguya” e o mestre Hayao Miyazaki ter anunciado a reforma.
Quer se trate de um hiato por tempo indeterminado, quer seja, de facto, a última oferta da Ghibli ao seu público, “Memórias de Marnie” deixa claro que a sensibilidade dos artistas do icónico estúdio está com um avanço considerável em relação às propostas que nos chegam do Ocidente – perdoem-nos os fãs incondicionais dos Mínimos.
A partir do livro “When Marnie Was There” (um clássico de Joan G. Robinson que Miyazaki havia considerado como uma das 50 obras essenciais de literatura infantil), o protegido do responsável por “O Meu Vizinho Totoro”, Hiromasa Yonebayashi, encaminha “Memórias de Marnie” para um realismo pouco usual nas animações Ghibli e, pese haver um elemento sobrenatural, nunca chega a entrar por territórios encantados em que os animais falam, a título de exemplo.
O mote do filme é ao jeito das demais animações do estúdio: uma rapariga é apresentada a um meio distinto do seu, que por sua vez a irá mudar. Anna tem 12 anos, é tímida e melancólica, com forte apetência para o desenho. Após uma crise asmática, os pais adoptivos acham por bem encaminhá-la para um ambiente rural, na esperança que o ar puro do campo a fortaleça – um eco à tradição da medicina. Bem recebida pelos guardiões temporários, começa a explorar a pequena povoação onde toda a gente parece conhecer-se. É num dos estranhos momentos de fixação por uma casa abandonada de traços ocidentais, separada de Anna por um lago pantanoso, que Marnie (quiçá um eco de Hitchcock), uma criança loura que se distingue do contexto nipónico, se dá a conhecer como uma aparição. A casa, de forma inexplicável, ora está habitada em ambiente de festa, daquelas que Gatsby de Fitzgerald daria, ora está numa penumbra envelhecida e vazia. Uma vez que a amizade entre ambas as raparigas se estabelece, assume contornos de amor platónico sem, contudo, Yonebayashi fazer revelações gratuitas, deixando a ambiguidade seguir para um desenlace terno, tearjerker em potência.
Após “O Mundo Secreto de Arrietty” (2010), o segundo filme de Hirosama Yonebayashi confirma-nos que havia muito por conquistar na Ghibli, mesmo com um legado a ser respeitado. “Memórias de Marnie”, até ver (e sem surpresas), é o grande filme da edição de 2016 da Monstra – arriscamos até afirmar que é o possível vencedor da competição de longas-metragens do festival.
(Texto escrito antes do anúncio dos vencedores. A previsão confirmou-se e o filme levou para casa o prémio de melhor Longa da Monstra 2016)
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