“Tinham-se passado dezasseis horas desde o momento do seu regresso previsto, vinte e duas horas desde que ela saíra de casa. Só naquele momento é que me lembrei da sua voz quando ela se despedira mas, estranhamente, não me conseguia recordar se também me despedira dela.”
Um bom thriller acaba sempre por chamar a atenção dos leitores. Os ingredientes bombásticos das últimas tendências do thriller literário são as histórias marcadas por suspense, bem como pela desconfiança entre as personagens. A relação do casal de “Em Parte Incerta” (Bertrand Editora, 2013), o maior sucesso de vendas de Gillian Flynn até à data, está envolvida em tamanha desconfiança – com a dúvida a pairar à medida que a polícia procura Amy Dunne –, que pode ser fatal para qualquer um dos protagonistas. Noutro livro mais recente, “A Rapariga No Comboio” (Topseller, 2015), o vício de Rachel impede-a de ver que a sua obsessão é a mais perigosa de todas, à medida que viaja todos os dias no comboio. Lançado este ano com a assinatura de Jane Shemilt, “A Filha Desaparecida” (Editorial Presença, 2016) é a nova aposta para os amantes deste género literário.
Jenny é das poucas pessoas que pode gabar-se da vida perfeita que leva. É médica, casada com um neurocirurgião de sucesso e dotada de uma beleza espantosa. Tem uma bela casa em Bristol e três filhos perfeitos: os gémeos Ed e Theo e a filha mais nova, Naomi. Apesar de querer cuidar da sua família à sua medida, sente os filhos a afastarem-se cada vez mais mas, ciente dos inconvenientes da adolescência, dá-lhes espaço para viverem tranquilamente com os exames, os amigos e o futuro. Até que uma noite as horas passam e Naomi não aparece em casa, tal como estava combinado. Aos poucos, sem se aperceber, Jenny acaba por ver a perfeição da sua família desmoronar-se aos poucos.
Na sua obra de estreia, Jane Shemilt conseguiu passar perfeitamente o desespero da protagonista e as consequências de um desaparecimento para todos os elementos da família, à medida que conta a história em duas linhas temporais: uma logo após o desaparecimento de Naomi e, a outra, um ano depois, quando as pistas começam a não ser caminhos sem saída. “A Filha Desaparecida” contém os ingredientes bombásticos para um thriller de sucesso: a desconfiança no seio de uma família, seja entre mãe e filhos ou entre esposa e marido. A verdadeira força deste livro é a constatação de que a perfeição não está presente na família de Jenny, apesar dos seus esforços ao longo dos anos.
Inundada pelo desespero, o combustível que despoleta as suas emoções e acções, a protagonista acaba por colocar de lado todos os problemas que surgem pouco depois do desaparecimento da filha. Problemas que criaram raízes durante alguns anos e mostram a sua força num momento de vulnerabilidade. São estas questões, que surgem aos poucos, que tornam a ação de “A Filha Desaparecida” cheia de suspense. A certa altura não há como parar de ler, sensação que um bom thriller deve oferecer.
No entanto, é um dos livros onde a beleza da literatura está mais assente: o final escolhido por Jane Shemilt irá, provavelmente, deliciar ou repugnar alguns leitores. Se nos outros livros enumerados há uma reviravolta fantástica, especialmente no caso de Nick e Amy Dunne, esta acção poderá ir contra todas as altas expectativas de imprevisibilidade. As pistas são seguidas por Jenny e por Michael, o detective escolhido para investigar o desaparecimento de Naomi. Os suspeitos são infindáveis – apesar da escolha recair para uma pessoa mais próxima da filha de Jenny – e o final não é de cortar a respiração. Mas é neste ponto que a literatura se torna tão bela: haverá, certamente, muitos leitores que se vão apaixonar pelo final escolhido pela escritora; outros vão odiar, desejar nunca terem chegado ao fim. Certo é algumas questões fundamentais à história terem ficado sem resposta, e aqui reside talvez o maior erro desta obra de estreia. Louva-se no entanto a criação de uma história em duas linhas temporais que aponta ao lado obscuro das rotinas familiares.
Sem Comentários