“A este militar, a vida já tinha ensinado coisas suficientes para confiar na perna defeituosa, e não guardar ilusões no coração.”
Sandro William Junqueira nasceu em 1974 em Umtali, na Rodésia, chegando a Portugal dois anos depois. De acordo com o seu CV, experimentou música, escultura e pintura e design gráfico. No tempo presente diz poesia, trabalha regularmente no teatro como actor e encenador e lecciona Expressão Dramática. Publicou “O Caderno de Algoz” (Caminho, 2009), foi um dos onze escritores da novela policial “O Caso do Cadáver Esquisito” (Associação Cultural Prado, 2011) e, no romance, estreou-se com um livro desconcertante de título enigmático: “Um Piano Para Cavalos Altos” (Caminho, 2012).
Neste livro estamos numa cidade cercada por um muro, que deixa do lado de fora a natureza e os animais selvagens que nela se escondem. Há uma dezena de anos que não se ouve falar de assuntos da floresta, até que um militar é encontrado sem as mãos, o nariz, as orelhas, os olhos, parte de uma perna e um pé.
Do alto da torre governamental, o Ministro Calvo convoca o estado de emergência e declara: “Vamos enviar novamente um regimento armado para a floresta com a seguinte missão: abater tudo o que de indomesticável encontrarem”.
Na falta de lobos e não querendo que a situação seja esquecida sem um bode expiatório, o Ministro decide deter um operário, “um homem singular a quem muitos reconhecem um talento místico ou psíquico” e que todos chamam de Mensageiro.
O Director da prisão, conhecido por Gigante – tem 2,08 metros, pesa 109 quilos e usa sempre luvas de camurça -, tem apenas três dedos em cada mão, e sabe aquilo de que um Governo precisa para ser respeitado: “O trabalho de um governo que quer governar com coragem e seriedade, deve assentar no controlo do medo”. Ele que, apesar da falta de dedos, considera que são as mãos, mais ainda do que os olhos, o melhor detector de mentiras: o órgão do corpo humano que nos põe mais perto da verdade.
A grande paixão do Director é uma mulher ruiva de olhar bicolor, por quem se apaixonou dezasseis anos antes e com quem teve um filho quatro anos depois, apesar de não lhe abrir as pernas há já dois anos e apenas lhe dar beijos cumpridores. “Porque insisto em amar o que não conheço?”, vai dizendo de si para si enquanto trata de dar cores aos pensamentos e a torturar o Mensageiro, que aos poucos vai conseguindo rebentar com as fortalezas e entrar na sua mente.
Apertado pelo nó cego maternal, o filho do Director vai crescendo num mundo despojado de amor, tendo como credo imposto a ordem, a disciplina e a monotonia.
Todo o livro é atravessado por uma imensa fome que parece insaciável, seja esta feita de sexo, poder ou pura maldade, enquanto uma banda sonora vai passando em fundo empolgando a imaginação do leitor. Há empadas feitas com despojos de humanidade, um aquário que perde peixes como se estivesse furado, um miúdo preso a um piano, um médico loiro que considera Deus um mau arquitecto por não saber desenhar as sobrancelhas e o coração das pessoas, um hospital colocado do lado de fora do muro, um verdugo com um olho de vidro, uma sociedade separada por cores instigada a viver no medo, sempre num prenúncio de catástrofe. Afinal, “um mundo sem muros, sem cortinas, não é credível. Porque não há mundo sem medos. Os muros, as cortinas, são arquitectura do medo. E o medo somos nós”. Uma estreia muito prometedora e em forma de metáfora que conta já com descendência: “No Céu Não Há Limões” (Caminho, 2014) e “Quando as Girafas Baixam o Pescoço” (Caminho, 2017), livros onde mergulharemos mais para a frente do calendário.
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