O amor eterno e imaterial, aquele que nos acompanha na relação que estabelecemos com a vida e com a morte. Aquele que dá cor e sentido ao movimento e à paralisia e nos conduz através da rota de uma vida plena. Este parece ser o amor que Vinicius de Moraes apresenta, cumprimenta e aconchega nas crónicas que compõem “Para viver um grande amor“, (Companhia das Letras, 2017).
Trata-se de um livro de um homem apaixonado. Por tudo. Pela vida, pelo seu país, pelos outros, pelas mulheres, suas “bem-amadas“, pela existência de uma prece que o orientou e alimentou ao longo do seu trajecto pessoal, como escritor, trovador, diplomata e homem. Um homem que se sente humilde e desprovido de pretensões que não a fidelidade a si mesmo, transpondo para a sua vida as mais belas emoções e manifestações de amor. Trata-se de uma colectânea de crónicas intercaladas por poemas, escritas nas décadas de 50 e de 60, originalmente publicadas em 1962.
A vertente de cronista assumida por Vinicius de Moraes durante décadas terá sido das que mais facilmente chegou ao grande público, depois do Vinicius músico. Nas suas próprias palavras, crónica é “uma conversa íntima e livre“, que parte do interesse pessoal de quem escreve e encontra eco nos interesses de quem lê. Uma tarefa nem sempre fácil, especialmente para um prosador do quotidiano, como o próprio se define, vulnerável ao vazio da mente e à falta de assunto, à procura do inesperado. Vinicius distancia-se da prosa de ficção que considera aprisionadora do escritor, pelas personagens que criou e que tem de alimentar. Por contraponto, quem se alimenta da realidade fica vulnerável àquilo que a mesma lhe dá e à sua capacidade de a aproveitar.
Entre os mais de noventa títulos que compõem este livro encontramos textos que retratam ocorrências do quotidiano do autor, a pretexto das quais partilha reflexões e emoções que o revelam também na intimidade. Desde logo o valor e o sentido de cedências, a solidão das viagens, a superação de perdas, os gestos perdidos porque nunca transmitidos e a melodia das descrições de apaixonados. “O casamento da lua” talvez possa ser destacado como um dos textos com maior sentido de comparação e beleza, uma lua pálida, triste, que mirava o mundo com langor e suspirava. Mistério, encantamento e volúpia nas mais variadas situações, ou não fosse o (grande) amor eterno, assim o consigamos libertar das amarras do convencional e estereotipado.
Em “Para viver um grande amor” encontramos frases que se pressentem emocionadas e que, por isso, são impactantes. Há musicalidade, ritmo e muita estética na sua composição. Facilmente se adivinham sons subtis por detrás das palavras, podendo tratar-se de leves acordes musicais como de movimentos de corpos que se ajustam ao sabor daquilo que as palavras do poeta transmitem. Uma beleza eterna, esta de Vinicius também cinéfilo, facilmente se admitindo que a imagem mental produzida pelas suas palavras dispensaria outros guiões ou roteiros de cena.
Ler “Para viver um grande amor” é acompanhar o pensamento do autor numa época, extraindo beleza e emoção mesmo quando o assunto é o cruzamento com um grupo de jovens e a reflexão em torno da sua beleza, a leitura de um matutino e a forma como os críticos dissertam sobre a obra de outros ou a veneração perante o amor de outros reflectido nas suas obras e na sua arte. Um hino à entrega e à integridade do amor, seja ele qual for, seja ele de que tamanho for.
“Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar
Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.
E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e de amar, e se sentir maldito
E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito…”
Rio, 1960
1 Commentário
Prefiro o silêncio a algum comentário. Ótimo!!