“Orfeu da Conceição” (Companhia das Letras, 2016) é uma história de amor e tragédia, inspirada no mito de Orfeu e Eurídice, com todos os ingredientes para deixar o leitor deleitado pela intensidade das expressões de paixão e desespero dos seus protagonistas.
Na mitologia grega, filho do deus Apolo e da ninfa Calíope, Orfeu era o mais talentoso de todos os poetas e músicos. Tudo, e todos, encantava com a sua poesia. Eurídice era uma bela ninfa. A paixão de Orfeu e Eurídice terminou numa tragédia motivada pela beleza de Eurídice e o ciúme exacerbado do apicultor Aristeu. Eurídice acabou mortalmente picada por uma serpente. Desesperado, Orfeu tentou recuperar a sua amada, encontrando a morte após ter clamado o amor perdido e ter rejeitado todas as mulheres.
Esse mito grego foi a inspiração de uma das maiores realizações de Vinicius de Moraes, que começou a criação do “Orfeu da Conceição” em 1942, inspirado num jantar de amigos e numa viagem ao norte do Brasil, no espetáculo dos condomblés, capoeiras e festejos negros da Bahia. A vida do morro, com os seus heróis negros tocando violão, as suas paixões, escolas de samba, o carnaval e as tragédias passionais, completou a inspiração: “Tudo o que fiz foi colocar nas mãos de um herói de favela, em lugar de lira helênica, o violão brasileiro, e submete-lo ao sublime e trágico destino de seu homônimo grego”.
A peça foi acabada cinco anos depois, no ano de 1948, numa altura em que Vinicius era Cônsul do Brasil em Los Angeles, e aí escreveu o segundo acto, no qual o inferno do Orfeu é passado no carnaval carioca, em busca de Eurídice, enquadrado pela intensidade dos ritmos e da luxúria do samba, dos mascarados de travestis e dos negros que procuravam libertar-se da pobreza através das fantasias.
Orfeu é, para Vinicius, uma história positiva que representa a luta de um homem que, através da música, procura realizar e integrar a vida do seu semelhante, da sua amada e da perda desta. A peça surge como uma homenagem ao negro brasileiro, um reconhecimento do seu valor na cultura brasileira e das precárias condições da sua existência.
Orfeu, um sambista que vive no morro, filho de um músico e de uma lavadeira, apaixona-se por Eurídice. A paixão entre Orfeu e Eurídice desperta ciúmes, desejos de vingança, morte e desespero. Numa terça-feira de Carnaval, completamente perturbado, Orfeu desce do morro e vai procurar Eurídice. De volta à favela, solitário, é morto:
“Juntaram-se a Mulher, a Morte, a Lua
Para matar Orfeu, com tanta sorte
Que mataram Orfeu, a alma da rua
Orfeu, o generoso, Orfeu, o forte.
Porém as três não sabem de uma coisa:
Para matar Orfeu não basta a Morte.
Tudo morre que nasce e que viveu
Só não morre no mundo a voz de Orfeu.”
Os trechos da peça transmitem uma cadência narrativa com intensa emoção, beleza e efeito visual. Como é característico do texto teatral ou dramático, encontramos o texto principal composto pelas falas dos actores, e um texto secundário destinado ao leitor, completando o descritivo ou sentido da cena.
Entre o texto principal será de destacar os monólogos de Orfeu, pela sua profundidade psicológica e a forma como extravasa pensamentos de emoções, conferindo à cena uma representação gráfica especialmente relevante:
“Ainda é cedo demais, amiga. A lua
Está dando de mamar pras estrelinhas …
Toma o teu tempo. Quando for a hora
Desce do céu, amor, toda de branco
Como a lua. O mundo é todo de leite
Leite da lua, e alua és tu, Eurídice …
Chego de leve pelo espaço, desce
Por um fio de luz da lua cheia
Vem ilusão serena, coisa mansa
Vem com teus braços abraçar o mundo
O mundo que sou eu, que não sou nada
Sem Eurídice … Vem. Baixa de manso
Surge, desponta, desencanta, explode
Como uma flor-da-noite, minha amada …
Aqui ninguém nos vê. Esses que gritam
Não veem, não sabem ver. São todos cegos.
Cego só não sou eu que te respiro
Em cada aroma e te sinto em cada aragem
Cego só não sou eu que te descubro
Em cada coisa e te ouço em cada ruído
Cego só não sou eu que te recebo
Do mais fundo da noite, ó minha amiga
Minha amiga sem fim! quanto silêncio
Nos teus passos noturnos desfolhando
Estrelas! que milagre de poesia
Em tua ausência só minha! quanta música
Nesse teu longo despertar na treva!
(…)”
Em 25 de setembro de 1956, a peça estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Era na verdade um musical, com registo sonoro composto pelo próprio autor em parceria com António Carlos Jobim. Com composições em samba e bossa nova, o mito grego ganha uma roupagem brasileira. Vinicius consegue recrutar grandes nomes da cultura brasileira de então: Oscar Niemeyer fez os cenários, Carlos Scliar e Djanira fizeram os cartazes, o Teatro Experimental do Negro de Abdias Nascimento forneceu os actores para o elenco. Terá sido a primeira vez, na história do Teatro Municipal, que actores negros pisaram aquele palco.
Em 1959 a peça foi transformada no filme “Orfeu Negro”, alcançando repercussão mundial e conquistando a Palma de Ouro no Festival Cannes e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
A publicação que a Companhia das Letras traz em 2016 a Portugal fornece, para além dos três actos da peça, outros textos do autor que permitem melhor compreender e acompanhar tanto a construção da narrativa como a encenação da peça, propriamente dita. Ler “Orfeu da Conceição”, de Vinicius de Moraes, é confirmar o facto de estarmos perante um dos poetas brasileiros que melhor conseguiu traduzir em palavras o sentimento do amor.
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[…] “Orfeu da Conceição” (Blog Deus me Livro). Em: https://tinyurl.com/y37oml83. […]