Numa altura em que os thrillers nórdicos proliferam nas prateleiras das livrarias, conquistando cada vez mais leitores portugueses, eis que dois escritores decidem juntar-se para “estilhaçar a realidade e reconstituí-la como ficção” no livro “O Pai” (Planeta, 2016).
Como se não bastasse ser baseado numa história verídica para aguçar o apetite dos leitores, descobrimos que um dos autores – Stefan Thunberg – está mais envolvido na trama do que aparentemente se julgaria: enquanto se tornava um dos mais notáveis guionistas da Escandinávia, o resto da família celebrizava-se como “os mais procurados e famosos assaltantes de bancos da Suécia”. É precisamente esta a história que encontramos nestas páginas, escritas juntamente com um nome de peso da literatura escandinava de criminalidade: Anders Roslund.
Leo, Felix e Vincent são três irmãos que cresceram sob o jugo de um pai violento e alcoólico, que os formou e moldou à sua imagem e semelhança. Um pai a quem não bastava criar um vínculo de união inquebrável na família, mas garantir que os filhos se sabiam defender pelo uso da força. Após anos de intimidação – e principalmente depois de um grave acontecimento envolvendo a mãe -, tudo o que estes irmãos querem é não serem como o pai, mas cedo se tornam – juntamente com Jasper, um amigo de infância – nos autores dos “assaltos a bancos mais ousados da história da Suécia”. Em apenas dois anos, dez assaltos planeados ao mais ínfimo segundo e precisão militar, sem haver rasto das suas identidades. Como não podia deixar de ser, do outro lado temos John Broncks, o polícia que trabalha dia e noite no caso, confortando-se no facto de saber que, mais cedo ou mais tarde, aquele que ficou popularizado como “O Gangue Militar” irá cometer um erro.
Não é por acaso que a edição portuguesa adquiriu – e bem – o título “O Pai”, fugindo ao original “Made in Sweden”. O lado mais forte e interessante desta história acaba mesmo por ser o retrato de três crianças que cresceram em constante medo de um pai violento e dominador, e o modo como essa relação se repercute psicologicamente neles ao longo dos anos. Aliás, centrar a história unicamente nos assaltos e na sua investigação seria demasiado linear e redutor. Os autores, tomando partido da posição privilegiada que já percebemos terem na história, trazem algo verdadeiramente diferenciador relativamente a outros thrillers policiais: a visão de dentro. Thunberg pode não estar lá como personagem, mas está presente enquanto observador e com um capítulo final dedicado ao esclarecimento da “verdade por detrás da ficção”.
A história é narrada a dois tempos: o então e o agora – a infância e a vida adulta. A inocência de uma infância de subjugação à violência, em paralelo com uma vida adulta de perpetuação dessa mesma violência. Esta alternância constante entre o então e o agora permite-nos perceber, de modo dolorosamente claro, como situações do passado moldaram as personalidades do presente, como a sombra de um pai violento os vai perseguir mesmo em idade adulta. Só irmãos que cresceram lado a lado com a violência – “treinados no uso da força excessiva” – seriam capazes de usar desta maneira “armas como ferramentas. Violência como um ofício.”
Ainda que a história seja cativante e impressione pela conturbada relação pai-filho – chegando mesmo a tirar-nos do sério pelas atitudes negligentes e de incitação à violência por parte do pai –, a estrutura da narrativa nem sempre permite uma boa fluidez de leitura. À intercalação entre o então e o agora soma-se a alternância entre as perspectivas das várias personagens que, não se limitando à visão dicotómica polícia versus criminosos, acaba por criar, apenas numa primeira fase, alguma confusão no leitor. Apesar de ser evidente o esforço numa visão completa e aprofundada das vidas retratadas, sente-se que em determinadas situações o livro se torna demasiado longo – 520 páginas –, e que alguns pormenores poderiam ter ficado de parte. Com o avançar da leitura não só a narrativa fica melhor articulada como aumentam os momentos de tensão que nos fazem espreitar o mundo do crime.
Escrito a quatro mãos, “O Pai” tem no toque de autenticidade a sua maior atracção. Mais do que um thriller, estamos perante um drama psicológico que nos mostra como uma infância no seio de uma família violenta pode transformar três inocentes irmãos nos criminosos mais procurados da Suécia. A cada minuto é como estar lá a presenciar os roubos, a vivenciar a dinâmica do grupo, as motivações e as fraquezas que ficam cada vez mais evidentes com a aproximação do final. Uma trama digna de filme e a DreamWorks não perdeu tempo : os direitos já foram vendidos e a realização ficará a cargo de Steven Spielberg.
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