O nome de Alan Moore tem de ser um dos que dispensa mais apresentações, quando falamos em argumentistas de Banda Desenhada. A sua obra é vasta, contando com vários títulos que atingiram um estatuto de culto entre os leitores. Moore é hoje detentor de uma enorme projecção, fruto das várias adaptações ao Cinema dos seus trabalhos – ainda que o autor renegue essas mesmas adaptações, cuja qualidade é realmente duvidosa. Apesar de estarmos a falar de um autor bem consagrado e reconhecido por cá, a verdade é que em termos de publicação continuava a ser bastante desprezado, algo que mudou estrondosamente neste ano de 2016. Fica a sensação de que neste ano os astros se alinharam para Alan Moore em Portugal, como o provam a edição de “V For Vendetta” (com a presença de David Lloyd no lançamento) e “Watchmen” pela Levoir, de “Miracleman” pela G. Floy e de “Do Inferno” (talvez o melhor livro de Moore) e deste “Liga de Cavalheiros” pela Devir. Assim, de repente, temos cinco títulos do autor e todos considerados clássicos de um determinado género na BD. Fantástico!
Antes de avançar mais sobre este título convém contextualizá-lo um pouco. Esta Liga de Cavalheiros, criada por Alan Moore e Kevin O’Neill, teve início em 1999 e apresentava-se como uma espécie de Liga da Justiça da época Vitoriana, constituída por personagens literárias tão distintas como Mina Murray, Allan Quatermain, Capitão Nemo, Dr. Jekyll e o Homem Invisível. Porém, logo nas primeiras páginas desta saga, percebemos que estamos perante algo muito maior e que todas as aventuras vividas por estas personagens se apoiam numa enorme e complexa teia literária. É uma ideia comum esta de criar histórias novas com personagens clássicas que já caíram no domínio público, a série televisiva “Penny Dreadful” é disso um bom exemplo. Nesta última, porém, não existe uma história como esta em termos de densidade de referências. A “Liga de Cavalheiros” é um produto que resulta de um trabalho tanto hercúleo como enciclopédico de Alan Moore e que a destaca de qualquer outro trabalho do género.
O segundo volume começou imediatamente a ser publicado em 2002, o que reforçava a ideia de uma Liga robusta e preparada para continuar as suas aventuras de forma regular. Contudo, as intenções de Moore nunca foram as de prolongar estas histórias da mesma forma que acontece no género dos Super-Heróis. Talvez por isso a Liga tenha entrado, a seguir, num período de hiato que se prolongaria até 2007 com a edição de “Black Dossier”, uma espécie de livro informativo sobre este Universo, não se tratando efectivamente de um volume 3 – o qual só chegaria mais tarde.
Convém referir que, até ao momento, “Black Dossier” se tratava da única publicação relacionada com a Liga a não ter edição em Portugal. A opção da Devir em saltar este volume poderá estar relacionada com o facto de ser um produto diferente dos restantes livros e, por isso mesmo, mais arriscado no que toca a vendas. Este salto não é assim tão estranho quando estamos perante um livro extra, cuja leitura não é essencial para a compreensão do volume 3 (ainda que ajude a perceber determinadas opções). De qualquer das formas, este não deixa de ser um volume importante pela visão geral de toda a História da Liga e, mais uma vez, pelo estrondoso trabalho de Alan Moore que, além da curta aventura em BD a decorrer no universo Orweliano de 1984, escreveu uma série de histórias em prosa onde replica o estilo literário de vários autores, entre os quais William Shakespeare, John Cleland, P. G. Wodehouse e Jack Kerouac.
Tudo isto para chegarmos a este terceiro volume intitulado “Século”, um volume marcado pelo espírito da mudança – mudança essa tanto a nível editorial como de formato. Para começar assistimos à despedida definitiva entre Moore e a DC Comics (com quem o autor mantém uma relação conflituosa), com os direitos da Liga a passarem para a Top Shelf e Knockabout Comics (que também publicaram o spin-off “Nemo”). Em relação à estrutura – talvez pelo longo hiato -, Moore e O’Neill planearam dividir este volume em três capítulos distintos, editados em 2009, 2011 e 2012, respectivamente. Cada volume conteria uma aventura auto-conclusiva, ao mesmo tempo que desenvolveria uma história maior, que decorreria ao longo de um século, com o primeiro volume a passar-se em 1910, o segundo em 1969 e o terceiro em 2009. Uma premissa ambiciosa, com um resultado final bem positivo, para não variar. A ideia deste formato funcionou muito bem e apresentou-nos não só a diferentes fases desta Liga de Cavalheiros como a três épocas bem distintas. Abandonámos definitivamente a era Vitoriana para mergulhar de cabeça nos crimes do início do século XX, no activismo alucinatório dos anos 60, até chegarmos à esta nossa era moderna onde a tecnologia impera mas a magia não é esquecida. Ao longo destes três capítulos compilados nesta luxuosa edição da Devir, continuamos a seguir as aventuras da destemida líder da Liga, Mina Murray, sempre acompanhada pelos seus fiéis companheiros Allan Quatermain e Orlando, os únicos membros da Liga que conseguem aguentar a passagem do tempo devido às suas características especiais em relação ao envelhecimento.
É uma Liga, tanto em termos de equipa como de composição, bastante diferente, mas ao mesmo tempo a emanar a mesma classe e o mesmo charme que tem desde a sua origem. Os capítulos são bem estruturados, começando em 1910 com a recordação das mortes de Jack o Estripador (onde Moore volta a sublinhar uma teoria sobre a verdadeira identidade do assassino em série), a continuação do legado de Nemo e a visão de um futuro apocalíptico envolvendo o mestre do oculto Oliver Haddo (uma caricatura de Aleister Crowley). Saltando para a década de 1969, continuamos a seguir o culto de Haddo, que permanece bem activo mas ainda longe de alcançar as suas ambições apocalípticas, enquanto a Liga sofre internamente, como nunca antes, fruto também do peso da idade que cada um carrega.
Apenas em relação ao terceiro e último capítulo se sente alguma pressa na narrativa, algo que parece estar relacionado com a limitação a 72 páginas, que se provam insuficientes para concluir esta épica batalha entre a Liga e o culto de Haddo. A razão prende-se com o facto de os autores terem introduzido severas mudanças na vida dos seus protagonistas, que beneficiariam de mais tempo para os seus desenvolvimentos. Porém, se o ritmo da história sofre com isso, o sentimento final que prevalece continua a ser o de satisfação. Sem contar que este é o capítulo mais chocante em termos de referências literárias, uma vez que vai buscar duas fortes adições ao universo infantil para retratá-las como nunca as vimos antes e, só por isso, valeria sempre a pena.
Em relação a este trabalho fala-se sempre muito de Moore, devido ao seu conhecimento enciclopédico de literatura. No entanto, Kevin O’Neill também merece ser elogiado nesta empreitada à qual sempre se manteve fiel. A forma como O’Neill deu vida a estas personagens, dentro de um ambiente steampunk, mantém-se hoje como uma imagem de marca. As suas pranchas continuam a ser preenchidas com vários pormenores curiosos e importantes, resultando num trabalho final notável. Como extra, a edição contém ainda a história de ficção científica “Sicários da Lua”, onde Moore escreve ao estilo do autor John Thomas Sladek.
Para terminar é fácil concluir que este continua a ser um projecto muito interessante e querido na carreira dos seus autores. Até ao momento não sabemos se estamos perante o derradeiro último capítulo deste Universo mas, numa altura em que Donald Trump acaba de vencer a presidência dos Estados Unidos, é caso para pedirmos a Liga de volta. Continuamos claramente a precisar dela.
Sem Comentários