Foi uma das estrelas da última edição das Correntes d`Escritas, sobretudo pelo discurso coerente, pensado e inteligente que mostrou, quer na mesa onde participou como nas muitas conversas paralelas que foi mantendo com quem dele se aproximava, quebrando um aparente ar sério e uma timidez que se notava a milhas. Publicado este ano em Portugal pela Companhia das Letras, “A Resistência” é o seu quarto livro, uma história de irmãos que atravessa temas como a adopção, o exílio ou a importância de resistir. Um livro que balança entre a História e a ficção, de um escritor que diz não saber inventar. O Deus Me Livro esteve à conversa com Julián Fuks.
“Isto não é uma história. Isto é história.” Será “A Resistência” um livro de história vestido com as roupas mais vistosas do romance?
Pode ser concebido assim, sem dúvida, mas acho que a proposta será mais a de problematizar essas noções, atravessando um pouco a fronteira entre história e História. Essa mesma frase, dita nesse instante, é negada depois – no final desse capítulo lê-se “não sei dizer se isto é uma história”. Significa que o narrador pensa sobre essa questão o tempo todo, e aquilo que produz é fruto dessa complexidade, dessa diferença entre uma abordagem histórica e uma abordagem ficcional do passado. Há oscilações no livro: por vezes ele é um livro de História e, por outras, é um livro narrativo, ficcional.
Há qualquer coisa como um jogo de cadeira entre a ficção e a não ficção, uma troca de papéis entre quem está, de facto, sentado no divã do psicanalista. Quem procura, afinal, Sebastián? O irmão, perdido algures pelo caminho, ou a si próprio?
Acho que é uma questão importante: quem é o irmão em questão? No início há um narrador em busca de se aproximar do irmão, uma procura de um carinho, de uma história afectiva e pessoal; posteriormente, o que se nota é que é um pedido do irmão ausente, mas também uma tentativa do próprio – o narrador – de conseguir ter a sua história contada, concebida e compreendida – e de ser compreendido, portanto. Há de facto um jogo de deslocamentos entre o irmão que está a ser problematizado aqui. Quem é o protagonista do livro afinal?
De que forma é esta uma história pessoal? Há algo de Julián neste Sebastián em viagem pela memória familiar e da história latino-americana?
Tem muito, esse é o ponto de partida e o lugar que resolvi explorar. O que coloquei na mesa ontem foi justamente a minha incapacidade de inventar. Esta – “A Resistência” – é talvez uma maneira provocativa de colocar isso, uma escolha de não inventar e de acabar percebendo, ao longo da escrita, que tipo de invenção se cria quando a gente não quer inventar, que tipo de ficção se cria quando não se quer ficcionar e se ficciona, mesmo assim. Apesar de toda a vontade de se ser fiel aos factos acaba surgindo uma outra versão que, no final das contas, é talvez mais rica, que nos permite pensar mais a fundo nas questões.
A certo ponto Sebastián refere que a ditadura brasileira é como a argentina, que no Brasil a miséria se vê a cada esquina, mas que ainda assim “há gente sorridente por toda a parte”. Hoje em dia ainda há sorrisos? E está já a ditadura para trás das costas dos brasileiros (e argentinos)?
No livro essa visão está colocada, ainda que indirectamente, na imagem que teriam os argentinos exilados no Brasil naquela época – que é a percepção imediata que se tem do país. Apesar das mazelas e das misérias, vê-se um povo sorridente que se consegue manter alegre. Essa é uma imagem convencional do brasileiro, quase um cliché, que eu inseri para ser fiel a uma visão histórica. Mas acho que esse traço de personalidade continua a ser, em alguma medida, a do brasileiro: algo de humor, algo de leveza ao lidar com algumas durezas da vida. Mas, obviamente – e como qualquer povo -, não podemos reduzir o brasileiro a essa imagem, ainda que esta não se tenha transformado por aí além mesmo que os humores políticos no brasil sejam outros nesse momento.
O livro começa com uma citação de Ernesto Sabato, onde diz que resistir foi o lema de vida que adoptou – ainda que muitas vezes se tenha perguntado como encarnar essa palavra. No seu livro a resistência parece estender-se um pouco a tudo aquilo que nos vai destruindo: o esquecimento, o alienamento, a incapacidade de nos olharmos a nós próprios e aos outros. Como poderemos aprender a resistir?
No livro está colocado o duplo significado da noção de resistir, a ambivalência que prevalece quando pensamos em resistência: a resistência como aquilo que nos permite seguir em frente, encarando os problemas e tentando superá-los, e a resistência como aquilo que nos afasta, aquilo que nos fecha em nós mesmos. Esta ambivalência trabalha para transformar uma resistência noutra resistência, para superar a primeira resistência com uma nova resistência. Superar, por exemplo, a resistência do narrador em escrever mas que, ainda assim, escreve, transformando a sua escrita em resistência, fazendo um movimento de uma resistência negativa para algo de positivo, como uma forma de política.
Sebastián parece apontar o dedo ao irmão pela sua imobilidade, por não querer sair de um exílio auto-imposto que tem no seu quarto e no afastamento familiar o seu rosto mais visível. E será ele que parte numa demanda de aparência quixotesca: voltar a pertencer a um lugar que nunca pertenceu. De que forma nos marca o lugar em que nascemos? E será possível sermos felizes num lugar onde chegámos em fuga?
São várias perguntas aí. Em primeiro lugar, a busca de identidade colocada no livro talvez não devesse ser feita por esse narrador, esse sujeito que narra, numa busca paralela e lateral. Ele se incomoda com a imobilidade e o desinteresse que o irmão demonstra em saber a sua própria origem, em ir atrás da sua própria história. O narrador vai atrás mas nunca poderá ocupar aquele lugar ou desempenhar esse papel, por isso acaba por ser uma busca de identidade travada, sem total desenvoltura. Ao longo do livro Sebastian é incapaz de dar um passo à frente, de seguir nessa procura – porque não é a dele. Tendemos a conceber a identidade com base na nacionalidade mas ela é bem mais complexa do que isso. Ao longo de toda a minha história me perguntava se eu me deveria conceber como argentino – já que sou filhos de pais argentinos exilados no Brasil e lidei com a sensação de precariedade e de que não deveria ter nascido ali – mas, por outro lado, isso era uma forma de confronto com a realidade que eu sentia. Nasci no Brasil e vivi grande parte da minha vida ali, e a minha identificação é com aquele espaço. Quando os meus pais tentaram voltar para a Argentina, encerrar o exílio e voltar a morar na Argentina, senti aquilo como um exílio meu. Tinha seis anos de idade e não tinha vontade de sair do país onde tinha nascido. Contra a minha vontade fui levado para morar em outro lugar, contra a minha vontade estive fora por dois anos, e quando voltei vivi um sentimento de recuperação de um país que tinha perdido.
Muitas vezes o livro parece ter sido escrito como uma espécie de terapia para Sebastián, incapaz de confrontar o irmão antes que a história de ambos – ou a ausência dela – estivesse escrita, ainda que hajam passagens como esta: “Mas como poderia meu irmão representar alguém mais, se neste livro ele não representa sequer a si?”. O que esperar deste reencontro de irmãos guardado para última página e a pós-literatura?
O que faço neste livro é inserir, como literatura, algo do que já está fora dela. Algo do comentário sobre o livro já aparece aí: os pais entram, comentam, criticam. A auto-crítica do livro se dá dessa maneira, com o olhar do outro sobre aquilo que foi escrito. O irmão e o olhar do irmão – e o reencontro dos irmãos depois disso – é algo que gostei de manter fora da literatura, algo que não quis inserir ou aproximar, talvez justamente por essa dimensão de auto-terapia que há no livro e que não é uma terapia apenas pessoal. É também a exploração de uma terapia familiar e de algo que se deu ao longo do tempo e que me interessou explorar até um certo limite, até um certo lugar. É algo que me pareceu que poderia abordar porque foi importante para mim, para o meu irmão, para todos nós naquele instante, e que me pareceu uma matéria rica para sensivelmente transformar em literatura.
Sem Comentários