Uma novela gráfica que, entre uma boa análise histórica e o uso desregrado da ficção, nos mostra os alicerces onde foi fundada a democracia, ao mesmo tempo que esbate a imagem que temos da Grécia como uma rosa sem espinhos, fazendo de Atenas e arredores um mundo quase inteiramente botânico.
O mais curioso acaba por ser que, em “Democracia” (Bertrand, 2016), nem por uma única vez a palavra democracia é mencionada, mas não deixam de ser muitos os momentos em que esta é subentendida e gritada de muitas outras formas.
“Escolhemos um homem comum, um jovem que representa os sentimentos humanos intemporais acerca do ideal democrático“, escrevem os autores no prefácio. Esse rapaz é Leandro, amante das artes e que tem como trabalho catalogar as oferendas, que se vai ver arrastado para vários conflitos que assolam o seu país – onde Péricles é a figura de proa no que toca a exigir uma mudança nos destinos da nação e a denunciar a forma como a riqueza e o poder de decisão estão nas mãos de uns poucos.
Estamos em Maratona, ano 490 a. C., tempo em que os impostos altos são dados como certos. Na véspera da batalha pela independência, os atenienses conversam, e Leandro conta aos camaradas como chegou até ali, num percurso atravessado por abusos de poder, regimes tirânicos, corrupção, brutalidade e um amor pessoal aparentemente condenado à tragédia.
Para além de um tributo à democracia, este é também um livro que faz uma homenagem à literatura oral e à arte de contar histórias em voz alta. Um livro que apresenta a justiça, a tolerância e a sabedoria como os pilares da deusa Atena, mostrando a natureza humana como balançando entre o sangue de Apolo e o vinho de Dionísio, situada entre a virgindade e o espírito de bacantes.
Apesar de tudo, fica no ar a ideia da imperfeição da democracia que, até ver, será o sistema de governação mais justo que temos: “Nós e a cidade éramos um só, mas algumas coisas não mudavam.” Um drama épico com ilustrações à altura que, juntamente com “Maus”, de Spiegelman, ou “Persépolis”, de Marjane Satrapi, entra directamente para os grandes feitos produzidos pelas novelas gráficas que usam a história como alimento.
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