“As primeiras armas da América são meias de senhora, cigarros e outras mercadorias. Querem subjugar o mundo mas não conseguem subjugar a pequena Coreia.”
Joseph Estaline
A edição em Portugal de “Colosso” (Temas e Debates, 2015) – com o sub-título Ascensão e Queda do Império Americano – tem um problema irresolúvel de fundo. É que esta obra foi publicada em 2004. Desde aí, a América em especial e o mundo em geral sofreram alterações profundas nas variáveis geo-estratégicas, económicas, sociais e até ideológicas. O império americano de 2015 é muito diferente, de muitas maneiras, do que era há 12 anos atrás. No entretanto, tivemos um rol incrível de cataclismos naturais e sobrenaturais que mudaram de facto a face do mundo. Niall Fergusson escreve num momento da história que antecede a recessão económica iniciada em 2007, e respectivas crises das dívidas soberanas e da Moeda Única Europeia; a Primavera Árabe de 20010-11 e a desintegração de vários estados no Médio Oriente que se lhe seguiu; a eleição de Barak Obama e consequente retirada militar do Iraque e do Afeganistão; o surgimento do Estado Islâmico; os atentados terroristas de Madrid, Londres, Bombaim e Paris; a instauração de regimes socialistas no Brasil, na Venezuela e na Bolívia, a institucionalização do cartelismo no México, a morte de Bin Laden, o marmoto do Pacífico, o terramoto do Japão, etc., etc., etc.
Isto já para não falar da saída do Reino Unido da União Europeia, fenómeno do género poltergeist que soaria ao Professor Fergusson, em 2004, como uma novela distópica, de enredo excessivamente fantasista.
Por vezes, este abismo cognitivo resulta em favor do autor, que anuncia e prevê factos que vieram posteriormente a ocorrer; noutras, resulta em desfavor da obra, no seu todo e principalmente para o leitor, que não tem culpa de saber coisas desconhecidas em 2004. No prefácio, por exemplo, Fergusson especula que uma retirada ignominiosa do Iraque provocará o descalabro do império. Esse descalabro não aconteceu completamente, mas não deixa de ser verdade que a retirada americana facilitou, no mínimo, a afirmação militar de Estado Islâmico e a perda de influência dos EUA no Médio Oriente.
Niall Fergusson, eminente professor de Oxford, Harvard e Standford e célebre documentarista do Channel Four, procura nesta obra explicar as razões que estão na origem da incompetência imperial americana. São os Estados Unidos um império? Com certeza e, na verdade, o maior da história. Mas um império com limitações inéditas: é que, dadas as origens liberais e libertárias da sua nação federal, os americanos não gostam de ser ver como imperialistas. Isto embora, como o autor demonstra abundantemente – e muito bem acompanhado por outros ilustres académicos, como Yuval Noah Harari (1) -, a existência de impérios não seja propriamente algo de negativo na história humana. Pelo contrário, é a ausência de hegemonias imperiais que leva ao caos e à ruptura civilizacional. Niall Fergusson argumenta até que, em certos casos de nações falhadas, a invasão territorial de longo prazo seria muito preferível para a qualidade de vida dos povos nativos. Estamos assim a milhas do território politicamente correcto.
Um império em estado de negação.
Também, mas não só por causa das suas origens libertárias e anti-imperialistas, os americanos gostam de ser ver como a primeira potência global não imperial. O império americano é de governação indirecta, informal e não territorial. A política, nos casos de intervenção em países estrangeiros, tem sido a de criação de governos autóctones, mais ou menos fantoches, desde que cooperem com a filosofia mercantil americana. E, regra geral, quando invadem um país, fazem-no dentro de uma estreita janela temporal. Nunca pretendem de facto a ocupação de longo prazo.
É que, antes de ser um império político e militar, o império americano é uma iniciativa comercial. A “coca-colonização”, embora implique 752 instalações militares em mais de 130 países, é uma gigantesca operação de marketing cultural, que funciona melhor se os clientes permanecerem vivos, relativamente solventes e cidadãos de um estado de direito (ou pelo menos com o direito à propriedade minimamente assegurado). O espírito empreendedor e o poderio militar não fazem porém um império excepcional: a hegemonia americana tem muito em comum com os outros 70 impérios da história. E deve ser historicamente comparado.
No registo confessional em que é redigida a introdução, Niall Fergusson defende os impérios como forças benignas que impedem o terror dos pequenos estados contra outros estados, mas também contra os seus povos. E argumenta a favor de políticas imperiais que intervenham em estados como a Libéria (“estados fracassados” e/ou “regimes criminosos”), enquanto recusa carregar o insustentável fardo do homem branco: “A áfrica subsariana em particular tem empobrecido não devido à muitas vezes denunciada herança do colonialismo, mas sim a décadas de má governação desde a independência.”
Logo no seu início mas muito frequentemente no seu decorrer, a obra traz para as luzes da discussão um factor de declínio civilizacional que é pouco discutido nos dias de agora, embora tenha reinado sobre o pensamento filosófico europeu durante séculos: a ausência de uma vontade de poder. As elites americanas hesitam historicamente perante a possibilidade do poder global. E esse deficit de vontade de poder pode muito bem-estar na origem da queda do império.
A Ascensão.
O território dos Estados Unidos, logo após a independência, constituía 8% do actual e, em 1820, existiam apenas 320.000 americanos à face do planeta. A nação é assim, e ironicamente, imperialista logo na sua génese, sendo a conquista territorial do Oeste um primeiro exercício dessa expansão imperial. Apesar de grande parte dos territórios anexados terem sido comprados a franceses, espanhóis, ingleses, mexicanos e russos, foi necessário fazer a guerra com muitos povos e em múltiplos palcos para unificar a nação e os Estados Unidos, se são hoje uma potência militar de primeira grandeza, foi também porque sempre conviveram com violentos e massivos confrontos armados, tanto internamente como nos territórios da sua esfera de influência imediata.
Envolvidos logo no século XIX num movimento comercial expansionista, de carácter global, os EUA sempre mostraram reticências no que diz respeito à ocupação territorial típica do colonialismo europeu. A guerra sanguinolenta com os independentistas nas Filipinas, depois da vitória fácil frente aos espanhóis, levou à rejeição do modelo convencional e à preferência pela instalação de “bons governos” que colaborem com os interesses económicos e geo-estratégicos do Uncle Sam. Mas enquanto a Nicarágua, Cuba e a República Dominicana corresponderam à filosofia de tributar sem anexar, mantendo a independência destes países sob um governo fantoche, já S. Domingos e o Haiti trouxeram mais complicações, resolvidas com operações militares e intervenção directa na constituição de regimes e governos, embora ainda assim sem anexação formal (com excepção das Ilhas Virgens).
Observando o destino tirânico destes e de outros países, o autor interroga-se se a anexação não teria sido preferível. Os somoza na Nicarágua, Fulgêncio Baptista em Cuba e Tiburcio Andino nas Honduras (só para citar alguns exemplos) demonstraram que a política de influência nem sempre resultou na instauração de democracias humanistas e liberais, tendentes a aceitar a cultura comercial americana e a promover a qualidade de vida e os direitos fundamentais dos povos nativos.
As posteriores e consecutivas políticas externas de Hoover, Roosevelt e Wilson, que visavam a instalação de democracias pró-americanas na América do Sul, falharam redondamente. A defesa dos interesses mineiros americanos no México também não foi bem-sucedida. Isto apesar do intenso empenhamento político e militar da América, testemunhado desassombradamente pelo General Smedley D. Butler, em 1935:
“Ajudei a fazer do Haiti e de Cuba locais decentes para os rapazes do National City Bank obterem aí as suas receitas. Ajudei a saquear meia dúzia de repúblicas centro-americanas para benefício de Wall Street. O registo dos actos de extorsão é extenso. Ajudei a purificar a Nicarágua para o banco internacional Brown Brothers entre 1902 e 1912. Levei a luz à República Dominicana para os interesses da produção de açúcar em 1916. Ajudei a tornar as Honduras “adequadas” às empresas de frutas da América em 1903. (…) Retrospectivamente, sinto que até podia ter dado algumas dicas a Al Capone. O melhor que ele conseguiu fazer foi instalar os seus esquemas em três zonas de uma cidade. Nós, os fuzileiros, operámos em 3 continentes.”
O imperialismo do anti-imperialismo.
A América assume o império global com o culminar da Primeira Guerra Mundial, mas o seu envolvimento no conflito deveu-se fundamentalmente ao afundamento do Lusitania por um submarino alemão, que matou 128 americanos. E, também, à desastrada política externa alemã, que colocou em causa a integridade territorial dos EUA a propósito de uma pueril aliança diplomática com o México. Pearl Harbour e o 11 de Setembro são, comparativamente, fenómenos semelhantes: mesmo considerando os valores universalistas que decorrem da Constituição americana, a verdade é que o envolvimento dos Estados Unidos em conflitos militares de grande escala dependeu muitas vezes de um directo ataque aos seus interesses, aos seus bens e aos seus cidadãos e raramente de qualquer tipo de altruísmo ideológico.
Aliás, as duas grandes guerras não mudaram em nada o cepticismo com que os americanos encaram a acção imperial, embora a ameaça do Bloco Soviético, consequente ao desenlace da Segunda Grande Guerra, tenha sido levada muito a sério. Isto apesar da União Soviética ter recusado o modelo colonial que os americanos criticavam até aos seus próprios aliados.
Mais a mais, o século XX veio demonstrar que os Estados Unidos não são muito competentes quando precisam de implementar modelos de gestão territorial. A ocupação do Japão, que implicou o estacionamento de 400.000 homens no seu máximo e nunca menos de 100.000 até 1957, e a ocupação da Alemanha ocidental, constituíram responsabilidades financeiramente desastrosas, muito porque os países derrotados não estavam em condições de pagar a factura. Por um lado, existia uma vontade objectiva de diminuir as capacidades de produção industrial destes países, de forma a reduzir a possibilidade de voltarem a constituir ameaças à paz mundial, mas por outro era necessário criar condições de prosperidade que lhes permitissem o pagamento das compensações da guerra, juros das dívidas soberanas e custos da ocupação. As coisas nunca correram realmente a preceito para os americanos: “O que era planeado não acontecia. O que acontecia não era planeado. Não era tanto um império por convite mas um império de improviso.”
Seja como for, a ajuda americana depois da guerra (incluindo o Plano Marshall e os largos milhões gastos no Japão) nunca superou os 2% do PIB e, na altura em que J. F. Kennedy proclamava que estava disposto a pagar qualquer preço pela liberdade, a ajuda externa do Uncle Sam desceu abaixo dos 1%. O investimento militar, no entanto, foi sempre mais significativo e chegou a atingir os 14% do PIB nos anos 50, que traduziam os gastos tecnológicos da era atómica mas, também, as exigências financeiras das bases militares instaladas em 64 países em 1967, e 168 intervenções armadas entre 1946 e 1965.
O domínio mundial subsequente às grandes guerras levou os Estados Unidos a aplicarem de facto políticas imperiais, mas sempre em nome do anti-imperialismo (neste caso, o imperialismo russo). E a preferência pela “guerra limitada” foi uma constante, quase sempre com péssimos resultados. Essa filosofia imperial envergonhada, carregada de políticas dúbias, teve como resultado derrotas militares (Vietname e Somália), impasses e compromissos (Coreia), e desastres geo-estratégicos (Médio oriente).
Com o fim da Guerra Fria, e dado a importância política, civilizacional e energética da região, a questão era saber se os EUA intervinham no Médio Oriente sozinhos ou acompanhados. O autor responsabiliza a proverbial timidez operacional da ONU pelo unilateralismo americano e afirma, com resoluta lucidez: “o multilateralismo também pode ser menos que esplêndido.” E se é verdade que os EUA pagam 22% do que a ONU custa anualmente, sendo seu o primeiro contribuinte, convém também saber que o orçamento anual das Nações Unidas corresponde àquilo que o Pentágono gasta em 32 horas. Daí que Fergusson conclua que a ONU precisa mais dos EUA do que os EUA da ONU.
Seja como for, foi a primeira guerra do Iraque, legitimada pela Organização sediada em Nova Iorque, que levou a um reforço da presença do Tio Sam nesta conturbada região do mundo. E foi precisamente essa presença que primeiro acendeu o ressentimento de certos sectores islamitas.
A incompetência americana para exercer o domínio militar que a sua tecnologia e disponibilidade financeira de facto permite, em paralelo com a total incapacidade das Nações Unidas para resolverem a esmagadora maioria dos problemas que se lhe deparam, é evidente na análise dos confrontos contemporâneos. Em Mogadíscio, como no Haiti, os americanos mostraram que não estão preparados para sofrer baixas. E nos Balcãs – enquanto a ONU permitiu e assistiu impávida aos genocídios e alemães, franceses e ingleses contribuíam também e muito desajeitadamente com achas para a fogueira, a administração Clinton decidiu tomar uma decisão que prometia uma possibilidade de zero baixas: a NATO bombardeou os sérvios, matando mais de 30.000 pessoas e deslocando 1 milhão, entre Dezembro de 98 e Maio de 99. Tudo isto sem autorização da ONU, mas também sem grandes protestos por causa disso, estranhamente. Entretanto, no Ruanda, ocorria mais um desastre operacional das Nações Unidas, que desta vez contou também com a negligência americana e a cumplicidade dos franceses – o massacre dos tutsis pelos hutu resultou em 500.000 mortos, pelo menos.
Sobre as recentes guerras no Iraque e no Afeganistão o autor manifesta uma opinião não convencional. Seguindo a doutrina que recomenda o ataque a países que albergam organizações terroristas, já que o terrorismo é difícil de combater de outra forma por forças convencionais, a administração Bush consegui o apoio da ONU para a acção militar no Afeganistão, muito porque foi rapidamente colocado um governo nativo no poder. No caso do Iraque, Niall Fergusson mostra algum espanto pelo facto deste país não ter sido invadido antes de 2005, dadas as constantes infracções à lei internacional cometidas pelo governo de Saddam Hussein, que levaram a 22 resoluções do Conselho de Segurança (!). E assinala o cinismo da posição francesa, que é uma constante da sua relação com os Estados Unidos, enquanto desvaloriza a importância dos interesses do complexo industrial e militar na tomada de decisão de invadir o país (a cadeia de retalho Wall Mart subiu mais na bolsa do que a Halliburton durante os anos da guerra).
O autor gosta de chamar islamo-bolchevistas aos radicais islâmicos. É preciso dizer que esta nomenclatura não é completamente correcta. Se podemos enquadrar nesse imaginário, com um esforço de boa vontade, o regime dos Ayatollas, no Irão, a nomenclatura só muito dificilmente é apropriada para qualificar a Alquaeda ou o ISIS no mesmo enquadramento ideológico. Mais abrangente e menos polémica será, porventura a definição Islamo-fascistas usada por outros eminentes analistas da realidade política no Médio Oriente (2).
A queda.
Niall Fergusson pergunta-se, com algum desassombro e por várias vezes nesta obra: não será melhor para certos estados ditatoriais ou fracassados uma ocupação que permita a transição para a democracia sob protectorado, mesmo que esta ocupação dure décadas? Parece evidente que esta solução é preferível na maior parte dos casos, até porque a descolonização descomprometida com os destinos regimentais dos países colonizados, como foi feita pelas potências ocidentais, não trouxe paz nem prosperidade a esses países. Ao contrário, as ditaduras que se seguiram foram, na perspectiva das populações nativas, bem piores que os impérios coloniais. Na maior parte dos casos, as ex-colónias ficaram mais pobres relativamente às metrópoles. E a globalização não é desculpa: para o autor, o problema da globalização não é o de exisitir. É o de ser pouco ambiciosa.
Por outro lado, as variáveis ambientais, geográficas ou de salubridade não justificam, na opinião de de Fergusson, o subdesenvolvimento das ex-colónias, como defendem vários e eminentes autores contemporâneos como o Professor Jared Diamond (3). O problema está na ausência de instituições democráticas e liberais, que assegurem os direitos da propriedade privada, as liberdades individuais, os direitos contratuais, a estabilidade governativa, a governação honesta, moderada e eficiente; uma opinião que tem vindo a ser secundada posteriormente por outros reputados académicos como Daron Acemoglu e James A. Robinson (4). É, assim, por omissão de civilização e não por excesso que pecam os impérios.
Seguindo a lógica desta linha de pensamento, não devemos criticar os americanos por intervirem em territórios além das suas fronteiras, mas por não estarem dispostos a prolongar a sua estadia por períodos mais longos, de forma a criar condições reais que alicercem o curso de democracias de inspiração ocidental.
Os britânicos ficaram 40 anos no Iraque, que é um estado inventado por eles. E quando permitiram a independência (controlada) e coroaram o rei Faisal, o hino que tocou na cerimónia oficial foi o “God Save the King”. É claro que a lógica de Fergusson tens as suas lacunas: mesmo permanecendo 40 anos no Iraque, o Império Britânico acabou por não criar um estado estável, como sabemos hoje muito bem.
E, de qualquer forma, percebe-se que os americanos prefiram residir no seu país e avaliar com cepticismo o colonialismo à maneira europeia. A nação federal oferece um nível de conforto material e civilizacional aos seus cidadãos que não tem comparação com o que era assegurado pela Inglaterra do século XIX (ou o Portugal dos Séculos XV a XX). Entre viver em Boston ou viver em Kabul, é compreensível que o americano médio prefira ficar em casa. Ou voltar para esse farto conforto o mais depressa que lhe seja possível.
Em oposição directa a escoceses e irlandeses, que usavam o serviço público colonial do Império Britânico como trampolim sócio-económico, os cidadãos mais discriminados dos Estados Unidos da América tendem, apesar de tudo, a querer permanecer nos Estados Unidos da América e, assim, os EUA lutam com uma escassez crónica de mão-de-obra para o “nation-building” que é necessário à boa gestão de um império (mesmo que apenas económico, mesmo que apenas cultural). Actualmente (leia-se: números de 2004), cerca de 3,8 milhões de americanos vivem no estrangeiro. Um oitavo do número de estrangeiros que vivem nos EUA. Destes americanos emigrantes, um milhão vive no México e 687 mil no Canadá. E dos 290 mil que vivem no Médio Oriente, dois terços residem em Israel. Há apenas 37 mil americanos a viver em África. A América é “um império sem colonos“. E como as faculdades americanas não têm vocação ideológica e técnica para a formação de quadros que operem além-fronteiras, é também “um império sem administradores“.
Além do mais, o apoio popular a aventuras além mares com duração temporal substantiva é cada vez mais escasso. Se no Vietname foram precisos 30.000 mortos e anos de combate acesso para que a opinião pública retirasse o seu apoio ao esforço de guerra, no Iraque bastaram 6 meses de confronto para que a administração Bush se visse a braços com a contestação geral. Isto embora a análise histórica demonstre o acerto de uma estratégia mais consistente. A presença militar na Alemanha, no Japão e na Coreia do Sul, porque foi de longa duração (décadas), gerou a formação de estados bem-sucedidos.
Por outro lado, e paradoxalmente, a hegemonia americana não parece ameaçada, como nos tempos da Guerra Fria, por nenhum inimigo cujo poderio bélico ou económico tenha que ser levado em conta. No entendimento do autor, a União Europeia é o único rival à altura. A demografia é superior em mais do dobro (450 milhões de europeus para 200 milhões de Americanos) e o PIB é ligeiramente superior (mais uma vez, em números de 2004). A economia da União apresenta bons índices de produtividade, a aproximarem-se da americana, e um peso comercial que é par, mas não está tão endividada. Porém, e mesmo que se trate de um aliado céptico e, muitas vezes, cínico, a União Europeia não tem impulso imperial, nem coordenação militar, preferindo contar, nessa área, com o protagonismo americano, mesmo que depois se prontifique a criticá-lo abertamente.
Acresce que a União Europeia tem vários handicaps: a população envelhecida, um crescimento económico decepcionante, um mercado de trabalho pouco flexível, com altas taxas de desemprego e baixo voluntarismo. Os trabalhadores americanos folgam menos, fazem menos greves e têm um terço dos dias de férias em relação aos trabalhadores europeus. As políticas comunitárias, que tendem ao proteccionismo sectorial, e a união monetária, que demonstra grandes fragilidades (o autor antecipa a crise do euro com extrema acuidade), são também factores que reduzem a capacidade dos europeus de competirem efectivamente com os Estados Unidos.
A China – candidata a primeira potência mundial em 2041 (e de primeira potência de facto até 1850) apresenta altas taxas de crescimento económico. Mas também sérios problemas de crescimento e de interdependência comercial. E não está, ou não estava em 2004, em condições de competir tecnológica e militarmente com os Estados Unidos.
Assim, o declínio e queda do império americano será devido, fundamentalmente, a duas circunstâncias internas: por um lado, o ruído de fundo psico-social que está na génese da nação e é anti-imperialista, tem por consequência uma constante ausência de voluntarismo para a acção externa. Por outro, a dimensão da dívida pública e a consequente permanência de um estado de crise orçamental – curiosamente, não por causa dos gastos militares, que têm descido em relação ao PIB, consistentemente, desde os anos 50.
O produto americano subiu de 10% do produto mundial em 1980 para 31% em 2002 e a economia americana é duas vezes e meia maior que a japonesa, oito vezes e meia maior que a chinesa e trinta vezes maior que a russa (à data da redacção da obra). Os gastos militares dos EUA excedem o conjunto dos orçamentos de defesa da União Europeia, da China e da Rússia.
Os custos da invasão do Iraque e do Afeganistão, ao contrário do que é muitas vezes propagado, foram marginais face ao PIB. Mas o peso do consumo público e privado, bem como com a segurança social, está a transformar a América numa nação vulnerável.
Conclusão
Manifesta-se no Século XXI americano a mesma má equação que aflige a Europa desde as últimas décadas do Século XX: a relação deficitária entre a demografia e capacidade do estado em manter as prestações sociais. A médio prazo os EUA podem ter que escolher entre pagar a dívida soberana ou as pensões. O professor de Harvard traça aliás um quadro muito negro do futuro financeiro e tributário dos EUA: mesmo que os impostos sobre o rendimento fossem aumentados para o dobro e em tempo real, a sustentabilidade do sistema a médio-longo prazo não estaria ainda assim garantida.
O recurso à tradicional e muito questionável solução de emitir mais moeda já não é nada atraente, porque o correspondente aumento da inflacção levaria inevitavelmente à subida das taxas de juro dos títulos do tesouro e da dívida. Ora, os mais significativos detentores da dívida americana são os chineses e os japoneses, o que é, em termos geo-estratégicos e civilizacionais, talvez um pouco complicado. A garantia contra a catástrofe está no facto de tanto os credores do Império do Meio como os da Terra do Sol Nascente não estarem assim tão interessados na ruína dos EUA como poderia parecer à primeira vista, já que muito dependem da prosperidade dos mercados de consumo americanos. Mas esta conjuntura económica pode sempre mudar, claro, e um dumping de títulos da dívida do primeiro motor económico mundial é algo que pode absolutamente mudar o universo como o conhecemos.
É que um império rico e forte não é necessariamente um império poderoso. Fergusson enumera 3 deficits do império americano que contribuem para a redução da sua influência global: o económico, por causa da dívida, o da força de trabalho, por causa da inexistência de um corpo de quadros disponível a dedicar-se a uma carreira além mares; e o deficit de atenção, na medida em que o povo americano tende a relativizar a importância dos acontecimentos políticos e militares externos e a colocar-se instintivamente com políticas de cariz imperialista.
O império em negação, que atribui recursos insuficientes aos aspectos não militares das intervenções e que procura transformar os territórios económicos e políticos dos países colonizados num prazo irresponsavelmente curto, é também um império de gordos: “o fardo do homem branco desceu-lhe para a cintura“. E atenção. Nem é preciso que o império caia para que se crie uma perigosa “apolaridade” global“, O futuro, em resumo, poderá revelar-se por algum tempo como apolar, um mundo em que não haverá sequer uma potência imperial dominante, talvez como o século IX mas sem o califado abássida”.
Niall Fergusson não é um prosador sobredotado. Mas, se compararmos este “Colosso” com outras duas obras do autor publicadas em Portugal (5), esta será talvez o trabalho de leitura mais aprazível e de tom menos académico, apesar dos problemas já referidos e que derivam do que aconteceu no mundo nos últimos 12 anos.
O autor pertence com certeza a uma tribo bastante assertiva de adivinhos. Prevê a crise económica que rebentou em 2007 com espantoso detalhe, profetiza o percurso da Moeda Única Europeia como se tivesse entrado numa máquina do tempo para ver a coisa acontecer uns anos mais tarde e palpita-lhe que o abandono precoce do Iraque poderia descambar em algo como o Estado Islâmico. Mas também é verdade que a ignorância sobre factos entretanto ocorridos, como a incapacidade de encontrar as armas de destruição maciça no Iraque, que era segmento fundamental do argumento para a invasão, impedem o bom professor de ter no seu leitor um dedicado apologista. Ainda assim, e considerando o acerto de muitas das suas previsões, será de levar muito a sério a perspectiva de uma ruptura do sistema financeiro americano, que o autor anuncia como incontornável. E uma consequente era de apolaridade que, atendendo objectivamente às lições da história, não é nada recomendável.
Um dos mais interessantes contributos desta obra é que se trata de um trabalho de vocação comparativa. O autor explica-nos outros impérios para nos explicar o americano. E principalmente explica com mestria e capacidade de síntese o Império Britânico. E é através desse esforço dialéctico que percebemos as fragilidades de um “império devedor”, uma excepção volátil às tradições imperiais anteriores, que investiam nos territórios da sua esfera de influência e eram essencialmente entidades credoras.
“Colosso – Ascensão e Queda do Império Americano” é um livro inquietante e provocador, polémico na mesma medida que é lúcido. E que por isso vive para além dos seus defeitos intrínsecos. E que por isso é um documento de profundidade inegável. E, a espaços, bastante assustador.
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(1) Sapiens – De Animais a Deuses – Yuval Noah Harari – Campo das Letras Editora – 2015
(2) Islamofascism refers to use of the faith of Islam as a cover for totalitarian ideology. W. Schwartz. The Spectator . 2006
(3) Colapso – Ascensão e Queda das Sociedades Humanas – Jared Diamond – Gradiva – 2006
(4) Porque Falham as Nações – Daron Acemoglu e James A. Robinson – Circulo de Leitores – 2012
(5) – História Virtual – Niall Ferguson (Coord.) – Tinta da China – 2006; A Lógica do Dinheiro – Niall Fergusson – Temas e Debates – 2008
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