“Seguramente não sou eu
Ou antes: não é o ser que eu sou, sem finalidade e sem história.
É antes uma vontade indizível de falar docemente
De te lembrar tanta aventura vivida, tanto meandro de ternura
Neste momento de solidão e desmesurado perigo em que
[me encontro.”
Para viajar na poesia de Vinicius de Moraes, é necessário deixar a porta aberta, sentindo toda a brisa fresca das suas palavras e seguir caminho sem preocupações. Ler as suas palavras é sentir a sua respiração, nos ambientes mais silenciosos aos mais turbulentos, é ouvir os seus pensamentos mais profundos e escutar as conversas com os amigos. Não faltam definições para lhe apontarem: poeta, compositor, crítico, dramaturgo, guionista, diplomata, pai, amigo, marido e visionário. Com tantos papéis que lhe eram atribuídos, esta “Antologia Poética de Vinicius de Moraes” (Companhia de Letras, 2015) é um caminho luminoso para todos os novos apreciadores de poesia.
A riqueza da arte construída por Vinicius nunca é restrita a uma área única. Sendo um dos poucos poetas a conversar “no seio da modernidade toda a força da grande tradição lírica portuguesa”, da sua veia poética nasceram tantas outras formas de arte sob a forma de prosa, música – não fossem as suas composições uma referência para artistas contemporâneos como Caetano Veloso e Chico Buarque – e tantas outras. Talvez seja esta capacidade de se desdobrar em várias áreas que o tornou num dos raros poetas que publicaram “muitas páginas extraordinárias”.
Para entrar nesta antologia, começa-se com um breve piscar de olhos à vida do poeta graças a algumas fotografias selecionadas. Com um olhar directo para a câmara, rodeado de amigos e da família, de alguns dos seus poemas gravados em folhas de papel. Para mostrar a vida da poesia e, provavelmente só um pouco, da vida de Vinicius de Moraes. Utilizando as palavras de Antonio Candido, os seus poemas combinam “de maneira admirável o requinte da fatura com a expressão íntegra das emoções” e a “espontaneidade foi a sua mais bela construção”. Não é preciso ir longe na leitura para se sentir essa espontaneidade. Logo no poema inaugural (Ilha do Governador), é perceptível a vontade do poeta em descrever tudo à sua volta e as suas memórias: “Os olhos de Susana eram doces mas Eli tinha seios bonitos/ Eu sofria junto de Susana – ela era a contemplação das [tardes longas/ (…) Como não lembrar essas noites cheias de mar batendo? Como não lembrar Susana e Eli?”. Uma marca que continua em muitos dos poemas colocados nesta antologia (“Longe dos pescadores os rios infindáveis vão morrendo [de sede lentamente/ Eles foram vistos caminhando de noite para o amor [- oh, a mulher amada é como a fonte!”).
Ao longo do livro, o leitor é levado pelas sensações e pensamentos de Vinicius de Moraes. A intensidade das palavras é de tal ordem forte que será capaz de trazer sensibilidade ao leitor menos dado ao sentimento. Se a poesia é a música da alma, tal como escreveu Voltaire, então não há poeta com a alma mais visível. As elegias, colocadas no início desta antologia, são o resultado de intensas mudanças na vida do poeta: casa-se com Tati, a sua primeira mulher e, após uma breve temporada na Inglaterra para estudar literatura, tem a sua primeira filha, Susana. Acaba por mudar-se para o Leblon, em 1942, para seguir a carreira diplomática. As elegias (“Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde/ E sonham no longo percurso com automóveis, [apartamentos…”) encerram um ciclo de vida ligado à juventude católica e a uma poética circunspecta para dar origem às palavras ligadas à vida na rua, aos amores pelas mulheres e a uma actividade intelectual, com os livros e jornais e os encontros em bares com outros cariocas apaixonados pela arte.
São estes poemas dedicados às ruas e aos seus amores que inundam esta obra, como o belo Soneto do Amor Maior (“Maior amor nem mais estranho existe/ Que o meu, que não sossega a coisa amada”) ou o sôfrego A Mulher Que Passa (“Meu Deus, eu quero a mulher que passa./ Seu dorso frio é um campo de lírios/ Tem sete cores nos seus cabelos”). Passaram três décadas sobre a morte de Vinicius e a sua obra ganha cada vez mais força. Não há mais palavras que consigam descrever esta bela antologia, são os olhos e as sensações do leitores que podem avaliar os restantes poemas. Referindo novamente Antonio Candido, Vinicius de Moraes “não teve medo de ser profundamente humano em tudo o que escreveu”. O resultado é a intemporalidade dos seus poemas.
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