Depois de ler “Sou uma aldeia em chamas”, Svetlana encontrou em Ales Adamóvitch a inspiração para a consecução do seu trabalho e a forma de materializar narrativamente a sua visão do mundo: o romance de vozes. Em “A guerra não rosto de mulher” (Elsinore, 2016), o primeiro livro de Svetlana Alexievich publicado em 1985, a polifonia é construída a partir dos relatos das mulheres soviéticas que participaram na segunda guerra mundial.
“Os relatos femininos são diferentes e falam de coisas diferentes. A guerra «feminina» tem as suas cores, os seus cheiros, a sua iluminação e o seu espaço de sentimentos. Tem as suas palavras.”
As mulheres não eram mais enfermeiras ou médicas como noutras guerras, mas militares. Atiradoras, atiradoras de metralhadora, sargentos, tenentes, subtenentes, artilheiras antiaéreas, armeiras de aviação, batedoras. Papéis outrora masculinos assumidos com a determinação de quem queria estar na frente, de quem queria representar a família, de quem viu morrer a família, de quem sabia poder contribuir com a sua força para o triunfo.
“Há um mundo inteiro oculto de nós. Quero escrever a história desta guerra. A história feminina.”
De que falariam as mulheres se falassem da guerra, da vitória que também foi sua? Svetlana entrevistou cerca 200 mulheres que estiveram na guerra. Mulheres que, em média, entravam para o combate aos 17 anos e saíam aos 24 anos.
“Quero falar… falar! Desafogar-me! Até que enfim, alguém quer ouvir-nos. Ficámos caladas tantos anos, mesmo em casa. Dezenas de anos. No primeiro ano depois de regressar da guerra, falava e falava. Ninguém me ouvia. Calei-me… “
A ânsia de ir para a frente de combate era partilhada por muitas mulheres, meninas das suas famílias, que não tinham sido beijadas ainda ou tido sequer um namorado. Trocaram o vestido por uma farda militar. As tranças eram cortadas para que o cabelo não fosse perda de tempo. Se fossem escolhidas, avançavam para o treino militar com a alegria e a determinação de quem sabia que faria a diferença. Eram certeiras e eficazes. Receberam condecorações pelos seus feitos na mesma medida que os homens.
Nina Iakovlevena foi condecorada com a medalha por feitos de Armas e a Ordem da Estrela vermelha (conferida por 15 feridos resgatados) e com a Ordem da Grande Guerra Patriótica de segundo grau. As medalhas assombravam os rapazes que chegavam ao campo de batalha, também eles com 18, 19 anos. Nina partiu de casa aos 18 anos com cinco amigas, “As raparigas de Kanakovo” como lhes chamavam os tanquistas, só ela regressou depois a casa.
Aos 19 anos Nadejda recebeu a Medalha de Bravura, aos 19 anos ficou grisalha, e aos 19 anos uma bala atravessou-lhe as vértebras ficando paralisada.
Klávdia ouviu o chocalhar dos ossos no primeiro soldado que matou. As pernas tremeram-lhe. Chorou. A primeira vez foi aterrador, depois habituou-se a matar sem pena. Regressou da guerra aos 20 anos com o cabelo branco.
Vera sonhava ser actriz como Larissa Reisner, mas antes disso queria ir para a guerra. Estar ao lado do namorado na guerra. Morrer com ele na mesma batalha.
“As raparigas sentiam-se em pé de igualdade com os rapazes, não nos separavam, pelo contrário, ouvíamos desde crianças, desde os tempos da escola: «Raparigas, ao volante do trator!», «Raparigas, ao volante do avião!»
Muitas raparigas prometeram não ceder ao amor durante a guerra. Outras apaixonavam-se e zelavam o amor para evitar transferências de unidades entre os apaixonados, outras assumiam o papel de esposas de campanha para lutar contra o medo da noite e da morte. Efrossínia amaldiçoou a rapidez com que enterravam os mortos quando abraçou o seu marido já sem vida. Não chegaram a ter filhos, a casa de ambos ardera, queria uma campa para o visitar depois da guerra, recusou-se a que o enterrassem numa vala como os outros mortos e pediu para enterrá-lo na sua terra. “Deram-me um avião especial por uma noite. Entrei no avião… abracei o caixão… E perdi os sentidos…”
As mulheres que voltaram da guerra chegaram velhas, inadaptadas, sem profissão. Depois de quatro anos não sabiam que melhores pinças faziam uma saia, como equilibrar o corpo em saltos altos, como recuperar o domínio feminino. Sobre elas diziam que eram as cabras da trincheira, sedutoras e desfazedoras de lares. Humilhadas e sujeitas à ostracização, muitas silenciaram o seu passado. As condecorações foram ocultadas, as memórias reprimidas. Os homens festejaram a vitória, mas não com elas.
“Agora falam da homenagem, do respeito. Mas as raparigas estão quase todas sós. Solteiras. Vivem em casas partilhadas. Quem teve penas delas? Quem as defendeu? Onde foram parar vocês todos depois da guerra? Traidores!”
Estima-se que cerca um milhão de mulheres estiveram na frente de combate e ajudaram a União soviética a combater os nazis. Mas a história não foi das mulheres. Neste livro, Svetlana recupera o testemunho de centenas de mulheres que ninguém quis ouvir. Escutamos as suas lutas, as suas mortes, os seus feitos, tão impossíveis de alcançar para os homens que as receberam pela primeira vez nas suas unidades. Acompanhamos o silêncio, o sofrimento e a solidão quando recomeçaram as suas vidas depois da guerra. Os seus relatos são de um heroísmo despretensioso e comovente. Foram as suas guerras.
“Não se pode ter um coração para o ódio e outro para o amor. O ser humano só tem um, e eu sempre pensei em como salvar o meu coração.”
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