Nascida em 1926 em Monroeville, no Alabama – Estados Unidos da América -, Harper Lee é a autora de “Matar a Cotovia”, considerado por muito boa gente e publicação um dos grandes romances do século XX.
Publicado originalmente em 1960, o primeiro romance de Harper Lee vendeu já mais de 30 milhões de exemplares em todo o mundo, tendo a escritora vencido alguns prémios, entre os quais se encontra o prestigiado Pullitzer, em 1961, e a Medalha Presidencial para a Liberdade, atribuída em 1999 pelo seu contributo prestado à literatura.
O livro, que teve como grande inspiração as observações de Lee da sua família e vizinhos – assim como um acontecimento decorrido quando a autora tinha dez anos -, fala da irracionalidade dos adultos em relação a questões de raça, género e classe no sul do país nos anos 1930, irracionalidade essa que chega ao leitor sob o ponto de vista de duas crianças.
Depois da edição deste verdadeiro marco literário, Harper Lee saiu completamente de cena, tendo a sua ligação à literatura praticamente ficado ligada à assistência que prestou a Truman Capote no trabalho de pesquisa para o também clássico “In Cold Blood”, corria então o ano de 1966. Lee recebeu inúmeras condecorações de várias universidades, mas recusou sempre fazer qualquer discurso de agradecimento, remetendo-se a um longo anonimato quebrado por textos publicados em algumas publicações.
Em Fevereiro deste ano, o mundo literário parou e susteve a respiração. O advogado de Lee – agora com 88 anos – fazia uma declaração confirmando a publicação de um novo romance intitulado “Go Set a Watchman” – que, na edição portuguesa, recebeu o título de “Vai e põe uma sentinela” (Editorial Presença, 2015) – a partir do romance manuscrito que desde então se encontrava perdido. Escrito em meados dos anos 1950, o livro serviu de primeiro rascunho a “Matar Uma Cotovia”, acabando de ser publicado em Julho de 2015 – a edição portuguesa chega às livrarias a 21 deste mês. A pergunta que se poderá colocar é esta: será isto motivo para tanto alarido? A resposta é curta e tem três letras: sim.
Jean Louise Finch – conhecida por Scout – tem aqui 26 anos, regressando da Grande Maçã a Maycomb, a sua cidade natal no Alabama, para visitar o pai Atticus, que se encontra num estado de saúde preocupante.
Estamos em meados dos anos 1950, um período efervescente em que a nação americana está dividida em relação às questões raciais, com o sul a manter os mesmos ideais que conduziram o país a uma guerra civil calamitosa.
Este não será, porém, um regresso fácil para Scout, apesar de aparentemente nada ter mudado: Henry Clifton, o seu amigo colorido que se tornou com o tempo no discípulo e sucessor de Atticus, continua a fazer-lhe a corte e a beijá-la nos lábios quando encontra uma aberta, achando que o casamento de ambos é algo de inevitável; Alexandra Finch Hancock, a tia que é “imponente de qualquer ângulo“, mantém-se gélida, crítica e mandona; o tio Jack – ou Dr. Finch – continua a ser o maior excêntrico da comunidade, perdido nos seus livros e falando num estranho dialecto de inspiração vitoriana.
O cenário de imutabilidade é, porém, apenas aparente, pelo menos para Scout. Quando esta assiste a uma reunião do Conselho de Cidadãos do Condado de Maycomb, apercebe-se que a sua vida foi construída assente em valores e ideiais movediços, que estão agora prestes a desintegrar-se deixando unicamente um absoluto vazio: “Preciso de uma sentinela que avance e lhes anuncie que vinte e seis anos é demasiado tempo para pregar uma partida a alguém, por mais divertida que seja.”
Harper Lee oferece neste “Vai e põe uma sentinela” um quase tratado sobre a política, as raças e a hipocrisia necessária para viver em comunidade, ao mesmo tempo que permite a Scout experienciar uma pequena epifania, reflectida em pequenas frases como esta: “É sempre fácil olharmos para trás e vermos o que fomos ontem ou há dez anos. O que é difícil é vermos o que fomos hoje.”
Neste romance que se devora em poucas horas, Harper Lee revela-nos uma multiplicidade de olhares e sentimentos, a começar com um retrato certeiro em tempos de guerra, que troca o cenário do conflito, distante, pela guerra diária de comportamentos de uma pequena comunidade religiosa muito dada ao preconceito: “Era um tempo de guerra: guerra ao pecado, à Coca-Cola, aos filmes, à caça ao domingo; guerra à tendência crescente de as jovens se pintarem e fumarem em público; guerra ao uísque – nesta questão, pelo menos cinquenta crianças todos os verões iam ao altar e juravam que não beberiam, fumariam ou diriam pragas até aos vinte e um anos; guerra a algo tão obscuro que Jean Louise nunca conseguiu perceber o que era, exceto não haver nada a jurar a esse respeito; e guerra entre as senhoras da cidade sobre quem oferecia a melhor mesa ao evangelista.”
Há também muita sátira e um humor cínico e bem-disposto. Veja-se esta frase sobre a psicanálise da prostituição: «Os homens de hoje transformaram a “outra” num sofá de psiquiatria, e com muito menos despesa.” Ou, em paralelo, uma imensa ignorância sexual, onde se pensa que a gravidez chega nove meses depois de um beijo na boca.
É um livro onde a ideia de tempo anda constantemente em marcha-atrás, revelando uma atmosfera que tem muito de similar ao dias que vivemos, fazendo uma vénia ao retrato pessimista que muitos vão traçando aos destinos de “uma civilização que nem a guerra nem a paz pode salvar.” Cinquenta anos depois, “Vai e põe uma sentinela” chega no momento certo.
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