“Toda A Luz Que Não Podemos Ver” (Editorial Presença, 2015) é um livro com a capacidade de tirar o fôlego e oferecer a serenidade ao leitor, numa mistura de características tão distintas que permanecem até à última página. Percorridos tantos caminhos, histórias, pormenores e mesmo desafios, nada fica por contar. Nenhum território fica por explorar, apesar da complexidade das narrativas colocadas por Anthony Doerr ao longo da obra.
Para não existir qualquer tipo de dúvida, “Toda A Luz Que Não Podemos Ver” é um livro sobre a guerra: a destruição geográfica, física e psicológica presente em todas as pessoas e em todos os territórios pisados pelas tropas alemãs. Devastação apresentada logo nas primeiras páginas através das duas personagens fulcrais de toda a história: a «rapariga invisual de dezasseis anos» – Marie-Laurie Le Blanc – e o «soldado raso alemão de dezoito anos e cabelos brancos» – Werner Pfenning. São dois olhares distintos para o mesmo acontecimento, com passados e culturas distintas. Uma guerra defrontada, na maioria do livro, em Saint-Malo, uma pequena cidade francesa descrita como um território em que «água rodeia a cidade de quatro lados. A sua ligação ao resto da França é ténue: uma passagem sobre o mar, uma ponte, uma língua de areia. Somos de Saint-Malo em primeiro lugar, dizem os habitantes da cidade». Foram quatro anos de ocupação, com Marie-Laurie fechada na sua casa à espera que os bombardeamentos terminem e Werner preso nos escombros do Hotel das Abelha. Cenários colocados nas primeiras páginas e capazes de provocar alguma confusão ao leitor. Uma confusão que se desvanece a partir do momento em que o autor decide contar a história de todas as personagens.
O engenho de Anthony Doerr para construir um enredo recheado de descrições é notório: num lado da moeda é contada a história de Marie-Laurie, em tempos anteriores a ficar permanentemente cega, e a do jovem órfão Werner, no abrigo para crianças abandonadas ao lado da irmã Jutta. A vida de Marie-Laurie não está envolta de muitos sucessos: vive unicamente com o pai, trabalhador do Muséum National D’Histoire Naturelle, e sente a visão a deteriorar-se à medida que os anos passam. Incitada pelo pai a participar numa visita guiada ao museu, tem conhecimento de uma velha lenda à volta de uma pedra preciosa, o Mar de Chamas. Supostamente trancada no museu para não estar à mão de qualquer pessoa, mesmo dos funcionários do museu, é capaz de trazer longa vida a quem a possui mas com um preço fatal a acompanhar. Após esta visita guiada, um mês depois Marie-Laurie fica cega e cheia de novos desafios ao lado do pai. Mesmo no estado mais vulnerável, o ser humano deseja, fortemente, sobreviver a todas as adversidades, e esse instinto verifica-se nesta jovem personagem, desde os primeiros tempos em Paris, antes da Segunda Guerra Mundial alastrar, até ao momento em que se encontra sozinha na casa de Saint-Malo, à espera dos bombardeamentos.
De um outro lado há Werner Pfenning, um jovem alemão órfão a ser criado em Zollverein, conhecido como um complexo de exploração mineira de carvão «nas cercanias de Essen, na Alemanha» em que chaminés «de fábrica expelem fumo e locomotivas circulam num e noutro sentido». Um cenário cinzento para um jovem extremamente inteligente e com pavor a um futuro na escuridão das minhas. Com o passar do tempo revela uma aptidão para rádios: em arranjá-los, em descobrir-lhes todos os mecanismos. Uma aptidão que acaba por levá-lo a um colégio militar alemão e, dessa forma, a afastar-se de um futuro, considerado por ele como pavoroso.
Quer aos olhos de Marie-Laurie, quer aos olhos de Werner, há uma interrogação constante: o que vai trazer a guerra? Estamos do lado do bem? Entre invasores e invadidos não há uma clara noção do bem e do mal, nos pensamentos e acções de todas as personagens. Há unicamente um desejo: da normalidade, dos tempos em que a guerra não estava a destruir a vida de todas as famílias – homens mortos a cada dia nos dois lados da guerra – por anos em que a paz prosperava em ambos os países. Nunca o bem e o mal estiveram tão bem equilibrados num enredo tão bem construído: curtos capítulos bem elaborados, com saltos temporais para explorar todas as personagens. Em cada momento, o leitor afunda-se um pouco mais em todos os que habitam em “Toda A Luz Que Não Podemos Ver”, e é esta atenção dada a cada detalhe das personagens que constitui a maior riqueza deste romance.
Cada um tem o seu destino traçado, cada passagem temporal esclarece a anterior e a seguinte. Em momentos de grande destruição há sempre uma luz. Um tipo de esperança que dá vida e queima, deixando marcas difíceis de sarar. “Toda A Luz Que Não Podemos Ver” é uma obra de sequelas: deixadas pela infância e pela guerra. Resta agora ter todos os olhos atentos aos próximos passos de Anthony Doerr.
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