«Sei agora o que nunca soube – que o amor encontra o seu estado mais puro quando julgamos que o fim chegou (…)», assume o narrador do novo livro de João Tordo, um moribundo à procura de si mesmo numa linha sem nome e sem aparente localização geográfica.
É de conhecimento geral que “O Luto de Elias Gro” (Companhia das Letras, 2015) é o bem-sucedido afastamento dos livros anteriores. Se as histórias criadas pelo escritor giravam em torno de um mistério, em que o protagonista encontrava o caminho através de algumas pistas, o narrador deste livro não procura a solução para um mistério colocado à sua frente, a acção não é estruturada para ser devorada por um leitor esfomeado (como o é “Três Vidas”, o vencedor do prémio literário José Saramago em 2009, ou “A Anatomia dos Mártires”, com a investigação de um jornalista pela lenda de Catarina Eufémia). Há, simplesmente, um homem cheio de mágoa, com os fantasmas do passado a atormentarem-no furiosamente.
De forma a afugentar o terror do passado, o narrador decide ir viver para o farol de uma ilha, a alguns quilómetros da povoação mais próxima. «Diziam que nela viviam menos de cem pessoas e que, na época balnear, os turistas a visitavam em grupos muito pequenos», a solução ideal para o protagonista viver os seus dias isolado, sem contacto com o exterior e as pessoas. Um estado de vida para os que ambicionam ressacar as mágoas do passado. O ambiente carregado de cinzento povoa a ilha e acompanha os seus habitantes peculiares: Elias Gro, o pastor ambicioso e sonhador – especialmente com a reconstrução da casa afundada do escritor moribundo –, a imagem mais próxima de um líder; a bondosa Alma, a viver fechada em desgosto pela morte prematura da sua filha; a criança Cecília, peculiar e cheia de curiosidade, com um vício sobre os ossos do corpo humano e, através das leituras de cadernos guardados na casa de Elias, o escritor Lars Drosler. A partir do momento em que as várias personagens vão aparecendo no caminho do narrador – uma vez mais sem nome, os comportamentos e pensamentos bastam para o leitor desenhar o aspeto do narrador –, as várias histórias misturam-se na linha de acção deste Luto de Elias Gro. Uma mistura de histórias presente na maioria dos livros de João Tordo, uma marca já identificável nos livros anteriores do escritor.
Se os vários enredos são já uma marca identificável na obra de João Tordo, o primeiro sinal de mudança está na carga de dor do protagonista. Se, na “Biografia Involuntária dos Amantes” (2014), a mágoa do professor universitário começava a ser explorada à medida que a história do seu amigo Saldaña Paris era colocada à disposição dos leitores – a procura de uma solução, envolvida em mistério –, neste romance não há qualquer objectivo: o protagonista vagueia pela ilha, sem destino e sem preocupações. Num primeiro plano existe o farol e a bebida a acompanhar, a deixá-lo inconsciente todas as noites e, no seguimento da história, chega a dormir numa casa abandonada na floresta da ilha. À mercê das chuvas ou do calor que se faz sentir, ao lado dos animais, com a tormenta do seu passado a infiltrar-se no presente. A sensação do futuro é quase inexistente para este protagonista, é a mestria de João Tordo que torna possível sentir o desespero da personagem. A agonia do narrador, situado no inferno, é o ponto alto ao longo de todo o livro: todos os restantes enredos são acessórios, mesmo a história do louco Drosler e a fé do sacerdote Elias.
De certo modo, a esperança permanece ao longo das páginas de “O Luto de Elias Gro”. Por detrás de todo o drama e tragédia construída por João Tordo, há «uma medida certa do amor» para os mais descrentes. Fica a sensação de vazio no final da história, o querer mais; o desejo de mais desenvolvimento pelos pormenores do narrador, da curiosa Cecília, de Erland e de todos os outros habitantes da ilha. João Tordo marcou, com cores bem intensas, a mudança como escritor; resta perceber se é uma mudança a manter nos próximos livros ou uma brisa passageira.
«A vida, neste momento, é precisamente aqui. Já se deu conta dessa contradição? […] Vou levar a minha filha à escola e queria era ficar na cama. Mas, se me deixo ficar na cama, sinto-me culpado por não me levantar. As pessoas aparecem precisamente no momento em que eu queria que me deixassem em paz. Mas, se não aparecem, fico aflito porque afinal ninguém me procura.»
Sem Comentários