Se gostam de livros atravessados por narradores sombrios, caminhos incertos e que se movem entre as areias movediças do thriller de espionagem, do falso romance histórico e do policial feito de (muitas) peças soltas, “Cifra” (Quetzal, 2015), do autor chinês Mai Jia – que no BI assina como Jiang Benhu -, é um verdadeiro achado.
Nascido numa pequena aldeia das montanhas no Leste da China em 1964, Mai Jia alistou-se no Exército, sendo incorporado numa divisão de inteligência militar da Academia de Engenharia. Durante esses 17 anos escreveu contos e peças de teatro, além de trinta e seis volumes de um diário que, até à data, continua inédito. Quanto a “Cifra”, editado originalmente em 2002, demorou dez anos a ser escrito, sendo o primeiro livro de uma trilogia de romances da qual fazem também parte os livros “Enredo” e “O Som do Vento”.
As primeiras páginas de “Cifra” são vertiginosas, um pouco à moda do que George Martin realiza nas suas Crónicas do Gelo e do Fogo: sempre que nos apaixonamos por uma personagem, convencidos do seu heroísmo e querendo saber mais sobre o seu destino, Mai Jia tira-nos – ou melhor, tira-lhes – o tapete, deixando-nos já descrentes e numa interrogação melancólica sobre se o livro terá, na realidade, uma personagem principal. Uma confirmação que chegará, mais tarde, com o nome de Rong Jinzhen – isto já na segunda parte do livro, altura em que surge o tal misterioso narrador para tomar conta das operações, confessando também o porquê de ter escrito o livro que o leitor segura agora nas mãos.
Rong Jinzhen é um génio matemático, conhecido em criança como o Patinho, que aprendeu Matemática a contar flores de pereira – flores essas que foram prolongando a vida do Sr. Auslander, a quem Jinzhen tratava carinhosamente por O Papá. Génio autodidacta, Jinzhen será recrutado pelos serviços secretos chineses, onde quebrará códigos e cifras inimigas como se fossem castelos de cartas construídos numa corrente de ar. Depois de descodificar a Púrpura, uma das cifras mais complexas do mundo da espionagem, decide aceitar um desafio colossal: decifrar a Negra, o maior enigma posto à frente de qualquer ser humano.
O narrador conta a história a partir de transcrições de entrevistas e documentos desclassificados, num livro que balança entre a esquizofrenia Kafkiana e a dedicação de artífice de Borges, conduzindo-nos numa viagem pela cultura chinesa – seja ela feita de iguarias gastronómicas, músicas escolares de Mao ou uma crença inabalável nos sonhos – e minando, em jeito de despedida e de forma muito subtil, um Estado repressivo e castrador da liberdade individual. Uma leitura fascinante, num livro repleto de grandes personagens e habitado por uma imensa tristeza.
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